Voltou “o Natal do teatro”. Rodrigo Francisco lembra as 40 vidas do Festival de Almada que viu nascer na varanda de casa

Rodrigo Francisco começou a trabalhar para a Companhia de Teatro de Almada (CTA) com 16 anos, nas montagens do Festival de Almada.

Catarina Pires in Mensagem 3 Julho 2023 | notícia online

O Festival de Almada está de volta, como todos os anos, há 40 edições. Para Rodrigo Francisco, diretor da Companhia de Teatro de Almada e do Festival que esta organiza há 39 anos, é como um Natal. São 20 espetáculos, nacionais e internacionais, de teatro, dança e novo circo. De 4 a 18 de julho, Almada sobe ao palco.

Em 2012, aos 31 anos, após a morte de Joaquim Benite, fundador da CTA e do Festival de Almada e figura tutelar que dá o nome ao Teatro Municipal sede da companhia, assumiu o lugar de diretor artístico, em substituição do mestre, um dos imprescindíveis de que falava Bertolt Brecht.

Em vésperas da 40ª edição do Festival de Almada, que de 4 a 18 de julho faz desta cidade o centro e de Lisboa a periferia, Rodrigo Francisco lembra a história da companhia que começou em Lisboa, com o Grupo de Campolide, e atravessou o rio para trazer o teatro e a cultura a uma cidade acabada de nascer.

Nos 50 anos da elevação de Almada a cidade, a CTA recebeu a Medalha de Ouro da Cidade, pela prestação de serviços distintos e altamente meritórios, de forma exemplar e duradoura. Um desses serviços é o Festival de Almada, considerado o mais importante festival de teatro nacional e internacional do país, que este ano homenageia João Mota, fundador da Comuna – Teatro de Pesquisa, e leva a cena, em nove palcos de Almada e Lisboa, vinte espetáculos, oito portugueses e 12 estrangeiros.

É sobre isso tudo e mais alguma coisa de que Rodrigo Francisco fala nesta entrevista.

A primeira vez que tiveste contacto com o Festival de Almada foi da varanda de casa, com cinco ou seis anos, quando viste um espetáculo na rua. Perguntaste o que era e a tua irmã respondeu…

“É o Festival de Almada, estúpido!” [ri] É a primeira memória que tenho do Festival de Almada. Eu vivia onde ainda moram os meus pais, na Avenida D. João I, ao pé da Incrível Almadense, e da varanda vi passar um tipo vestido de toureiro, com uma carripana e pessoas atrás. Só depois de trabalhar cá é que soube que espetáculo era um pasacalles, como dizem os espanhóis, de uma companhia de Oviedo. Nos anos 1980, uma coisa daquelas era uma grande novidade, em Almada.

Ficou-te na memória.

Só agora, a grande distância, é que tenho noção de que a revolução tinha sido apenas há dez anos, que não é nada. E até aí não havia nada, não havia festa nas ruas. Por isso, em 1984, quando o Festival de Almada é criado, tem um grande impacto na vida das pessoas e eu ainda vivi uma réstia disso. Esse espetáculo foi para aí em 1986 e foi esse balde de frescura. Entretanto, o festival foi crescendo, tomando sempre novas qualidades, como diz o Camões, mas mantendo algumas coisas que são essenciais.

Que coisas essenciais são essas?

Esta nossa forma artesanal de fazer as coisas, que acho muito importante mantermos. O Festival de Almada tem uma fórmula que eu penso que é única no mundo que é o facto de ser organizado por uma companhia de teatro. Acho que essa é a fórmula vencedora. Somos o maior Festival Internacional de Teatro do país e mantemos um cariz artesanal. Somos nós que fazemos o festival. Somos artistas a receber outros artistas e a receber o público que durante o ano frequenta o Teatro Municipal Joaquim Benite (TMJB). Isso caracteriza-nos e suponho que é o que faz com que tenhamos espectadores que nos seguem desde o início.

“No último dia do Festival de Almada, o público vota a cada ano no espetáculo para regressar no ano seguinte como espetáculo de honra e, portanto, sabe que o festival acabou, mas já está a começar o próximo”

A 4 de julho, começa a 40.ª edição do Festival de Almada. O que destacas destas 40 edições?

O Festival de Almada surge em 1984. O Joaquim Benite conhecia alguns festivais, sobretudo franceses, que visitava como jornalista – o Festival de Nancy, o Festival de Avignon – e este foi criado à semelhança desses, que nasceram no pós-segunda guerra mundial para colocar em diálogo os povos que se tinham combatido. O Jean Vilar, na segunda edição do Festival de Avignon [que criou, em 1947], põe em cena uma peça de Kleist [dramaturgo alemão do século XVIII]. Imagina o impacto que isto teve para aquelas pessoas que tinham estado ocupadas pelos alemães até dois anos antes.

Com esse gesto fez notar que os políticos declaram guerras, mas os povos e as culturas não têm de ser inimigos. O Festival de Almada inscreve-se nesse espírito.

 

A relação com o público é muito particular, não é? Há o Clube de Amigos do TMJB. Há um diálogo que vai sendo mantido entre a CTA e os espectadores. Há pessoas que vêm todos os anos, independentemente da programação. Reservam estas duas semanas de julho para ir ao teatro. Como se constrói isso?

Quando surge o Festival de Almada, em 1984, praticamente não havia festivais em Portugal. Hoje dá-se um pontapé numa pedra e sai de lá de baixo um festival. Li noutro dia que há já quase tantos festivais como dias do ano e se pensarmos que estes eventos se guardam para o verão, percebemos que há uma grande carga. Mas os espectadores continuam a precisar de acontecimentos esteio. Nós todos os anos sabemos que há Natal e eu acho que o Festival de Almada é uma espécie de Natal do teatro. Os espectadores sabem que todos os anos em julho há Festival de Almada, os criadores também o sabem, e, numa época em que acontecem tantas coisas sem se saber se no próximo ano acontecerão ou não, fazem falta acontecimentos como este, que são âncora e com os quais as pessoas sabem que podem contar.

No último dia do Festival de Almada, o público vota a cada ano no espetáculo para regressar no ano seguinte como espetáculo de honra e, portanto, sabe que o festival acabou, mas já está a começar o próximo, é como o ciclo da vida. Acho que é isso que explica essa continuidade de espectadores que nos acompanham desde a primeira edição.

“Quando veio cá a Isabelle Huppert, uma senhora francesa queria comprar a assinatura e não estava a perceber que o preço da assinatura era para ver os espetáculos todos, pensava que era só para aquele.”

Nunca tiveram crises de espectadores?

É inevitável que, quando há crises económicas, a bilheteira se ressinta, até as próprias assinaturas. Nós, todos os anos, pomos à venda 500 assinaturas a um preço simbólico. Para assistir a vinte espetáculos de teatro, o espectador que não seja membro do Clube de Amigos do TMJB paga 85 euros. São preços que não têm nada que ver com os preços que se praticam no resto dos festivais de teatro europeus, mas temos consciência de que estamos em Almada e de que estamos a servir uma população que não é propriamente a população que mora ali no Chiado (não sei se ainda mora lá alguém).

Mora, mas não serão muitos os que percebem português e, portanto, não serão potenciais espectadores…

Olha, mas falando nesses, nós já há alguns anos que temos alguns casais, sobretudo franceses, mas não só, que são daqueles reformados dourados, que ficam perplexos quando percebem que há um festival destes em Almada. Quando veio cá a Isabelle Huppert, uma senhora francesa queria comprar a assinatura e não estava a perceber que o preço da assinatura era para ver os espetáculos todos, pensava que era só para aquele. Mas também não seria constitucional fazer com que essas pessoas pagassem mais.

Pois não, mas a Companhia de Teatro de Almada começou por ser de Campolide, em Lisboa.

O Grupo de Campolide era um grupo de teatro amador, eram miúdos de vinte e poucos anos, que convidaram o Joaquim Benite, que na altura era crítico de teatro no Diário de Lisboa, a dirigir um espetáculo. Ele foi e fez um primeiro espetáculo que se chamava O Avançado Centro Morreu ao Amanhecer e depois fez um espetáculo seguinte que já venceu o Prémio da Crítica para melhor espetáculo amador desse ano, que era As Aventuras do Grande D. Quixote de La Mancha e do Gordo Sancho Pança e o sucesso foi tal que o grupo passa a fazer digressões em todo o país, não cobrando. A seguir à revolução, em 1976, profissionalizam-se e instalam-se no Teatro da Trindade, que significava pagar 30 ordenados sem ter apoios e vivendo só da mobilização do público para pagar o bilhete para ir aos espetáculos.

“A vinda para Almada inscreve-se no movimento de descentralização cultural, de vir para um sítio onde não havia teatro fazer teatro para gente que, muita dela, nunca tinha assistido a um espetáculo.”

Mas como e por que razão se fez a travessia para este lado?

Começou a notar-se que grande parte desse público eram operários aqui desta zona e quando surge a oportunidade de a companhia se instalar em Almada, no teatro da Academia Almadense, o Joaquim Benite disse: “Por que não? Vamos lá”. A vinda para Almada inscreve-se no movimento de descentralização cultural, que se inspira no movimento de descentralização cultural francês, de vir para um sítio onde não havia teatro fazer teatro para gente que, muita dela, nunca tinha assistido a um espetáculo.

Seis anos depois, é criado o Festival de Almada. É um aprofundamento dessa dinamização cultural e dessa relação com a cidade?

Sim, a CTA tinha no seu elenco muitos atores a fazer muitos espetáculos por dia, sobretudo infantis, que apresentavam em Almada e nos arredores, para poderem financiar-se, porque os apoios eram muito escassos nessa altura. Os atores animavam também grupos de teatro amador de associações de moradores, de escolas, de associações culturais e o Joaquim Benite lembra-se, em 1984, de mostrar estes trabalhos e, durante uma semana, em julho, fez a primeira mostra de teatro amador, no Beco dos Tanoeiros. Este ano, vamos ter uma exposição que parte desta coincidência de as 40 edições do Festival de Almada se cruzarem com os 50 anos da elevação de Almada a cidade, que mostra de que forma o festival foi crescendo com a cidade.

E também a fez crescer, não é?

Eu no texto que escrevi digo que é como se a cidade, que nasceu ainda em ditadura, fosse uma irmã mais velha do teatro. Nas primeiras edições, o Festival acontece muito na rua, no Beco dos Tanoeiros, depois no Pátio Prior do Crato, no Largo da Boca do Vento, na Casa da Cerca, tudo em Almada Velha, e depois começa a expandir-se à medida que a cidade também vai crescendo, para esta zona. Em 1992, já se usa aqui pela primeira vez a escola D. António da Costa e este edifício em que estamos [Teatro Municipal Joaquim Benite, també conhecido como Teatro Azul, da autoria dos arquitetos Manuel Graça Dias, Egas José Vieira e Gonçalo Afonso Dias] é fruto desse crescimento da cidade. Aqui onde estamos havia umas hortas, era um terreno camarário que não tinha sido urbanizado. Este teatro é inaugurado em 2005 e é o expoente dessa presença em Almada desde 1978.

Essa ideia do teatro de rua, muito presente nas primeiras edições, levava o teatro às populações. Hoje já não há isso, mas há o Palco Grande, ao ar livre, na Escola D. António da Costa, aqui ao lado.

O teatro nasceu assim. Há 2500 anos, os gregos inventaram essa fórmula que eu acho que faz parte do nosso ADN. Nas noites de verão aproveitamos o calor para refletir e estar juntos nesse ritual. Eu acho que isso vem connosco. Essa é a tradição destes festivais de teatro europeus, aproveitar o verão para nas noites de calor associar o prazer à reflexão e à fruição cultural porque quem nos visita conhece o ambiente que se vive e sabe que não é só ir ver um espetáculo de teatro.

Há a esplanada, os concertos de entrada livre, as exposições, as tertúlias, os colóquios, os cursos de formação.

Sim, a esplanada da escola, que é de entrada livre e onde todos podem vir aos concertos ou jantar ou beber um copo, é também a cantina onde jantam os artistas que participam no festival e, portanto, podemos estar a jantar ao lado do senhor Peter Stein ou de outra celebridade qualquer. Estes espaços que não são privados, não são de acesso vedado, e esse é um aspeto que acalentamos bastante, que as pessoas não se sintam separadas, não sintam que é só para gente muito culta ou muito rica ou muito velha ou muito o que quer que seja. Esta é a minha cidade, esta é a escola onde eu estudei, este é o meu festival e eu gosto muito de cá vir, é isso que procuramos que as pessoas sintam.

“O Mário Vieira de Carvalho teve uma frase muito simpática na inauguração deste teatro, disse que nos quinze dias de julho que dura o Festival de Almada, no que toca a criação cultural, Almada torna-se centro e Lisboa periferia. Foi muito gentil.”

O Festival de Almada também acontece em Lisboa. Há espetáculos no CCB, este ano, mas lembro-me de ver espetáculos no D. Maria II, no Maria Matos, no Teatro do Bairro Alto. É uma descentralização ao contrário?

O Mário Vieira de Carvalho teve uma frase muito simpática na inauguração deste teatro, disse que nos quinze dias de julho que dura o Festival de Almada, no que toca a criação cultural, Almada torna-se centro e Lisboa periferia. Foi muito gentil. Este movimento surge porque, em 1997, há um primeiro espetáculo que é apresentado no Teatro da Trindade e deve-se à colaboração entre o Joaquim Benite e o Carlos Fragateiro, que na altura dirigia o Teatro da Trindade. Não havia em Almada espaços para apresentar produções de grande formato e, portanto, no final dos anos 1990 e início de 2000, as grandes produções aconteciam em Lisboa. Quando se inaugura este teatro, em 2005, já é possível apresentá-los aqui e trazemos aqui grandes companhias, porque este palco, quando foi construído, era com o do CCB, um dos dois maiores do país. Mantivemos as colaborações, porque são uma forma de partilhar gastos e permitem este movimento interessante do público entre as duas margens.

E tu, como é que chegas à Companhia de Teatro de Almada? Quando eras miúdo não querias ser ator, nem encenador, nem diretor de teatro, pois não?

Não, eu queria ser forcado. Mas não progredi muito nessa área. Quando tinha para aí uns 16 anos, queria ir de férias no verão e não tinha dinheiro e resolvi inscrever-me para trabalhar nas montagens e contrataram-me. Foi em 1997. Nunca mais de cá saí. O Festival de Almada sempre foi feito com poucos meios e não havia dinheiro para contratar técnicos especializados, além dos que faziam parte do quadro da companhia. Estamos a falar de um tempo em que os espetáculos eram muito menos complexos do ponto de vista técnico. Hoje já não é bem assim.

E como é que de um trabalho de férias nas montagens se faz depois o percurso como autor, encenador e diretor artístico de uma companhia e de um festival de teatro?

Eu na altura tinha 16 anos e descobri a companhia e a figura do Joaquim Benite, a quem devo isto tudo. Ele gostava muito de ensinar e se via um jovem com talento para as artes fomentava muito esse interesse. No meu caso era a literatura. O curso de Línguas e Literaturas Modernas foi concomitante com o meu trabalho aqui. Eu tinha as minhas veleidades literárias, colaborava com o DNA e quando um texto meu era publicado ia todo ufano mostrar ao Benite. Ele sabia que eu tinha essa apetência pela literatura e empurrou-me para a escrita, desafiou-me a escrever uma peça. Devo-lhe isso. Escrevi e ele montou dois textos meus – o Quarto Minguante, que estreou em 2007, e depois o Tuning, em 2011. A partir de 2006 passei a ser assistente de encenação dele e, a dada altura, ele diz-me que devo começar a dirigir espetáculos e foi assim. E este ano…

“Quando os atores têm uma branca e ela acontece sempre no mesmo sítio chama-se calvário, que é uma expressão que está a desaparecer, só os atores de uma determinada geração é que usam.”

Estreias a peça Calvário. O teatro dentro do teatro.

É uma fórmula que não é nada original. Mas é uma coisa que os espetadores gostam muito, que é ver os bastidores. E então acabei por visitar este universo do Thomas Bernhard, que é um universo com o qual contactei aqui na companhia. O Joaquim Benite fez um espectáculo inesquecível com um texto dele que se chamava O Fazedor de Teatro, com o Morais e Castro, e depois fui assistente dele noutra peça que era O Presidente, protagonizada pelo Luís Vicente e pela Teresa Gafeira, em 2009. É um autor que eu sempre apreciei e já andava com esta ideia há anos, por observar os atores, de escrever uma peça em que houvesse um velho ator que às tantas se esquecia do texto e derivava…

Porquê Calvário?

Quando os atores têm uma branca e ela acontece sempre no mesmo sítio chama-se calvário, que é uma expressão que está a desaparecer, só os atores de uma determinada geração é que usam. “Eh pá, tenho aqui um calvário”, dizem eles quando sabem que aquela frase não conseguem, não entra, o que é um mistério para nós, que não somos atores. O interessante é que na montagem do Calvário, há vários calvários.

E como é que se resolvem?
Não sei, mas o que se passa na peça é que eles estão a ensaiar um texto do Thomas Bernhard, que é o Minetti, um texto belíssimo, sobre um velho ator que vai falando e o ator que está a ensaiar esta personagem do Minetti engana-se sempre na mesma zona do texto, engana-se nove vezes, repete a cena nove vezes e arranja sempre desculpas para o engano, nunca diz que foi ele que se esqueceu. Há quem diga que o Thomas Bernhard era um ator estimável, mas que depois não teve talento para continuar e escrevia estas peças impossíveis de decorar para se vingar dos atores e de facto são monólogos de páginas e páginas, de alguém que fala, fala, fala e alguém que escuta.

“O Festival de Almada este ano abre com o Valha-nos Aristófanes! [¡Que salga Aristófanes!], da companhia Els Joglars, que é um manifesto contra a ‘arte vaselina’.”

Mas o Calvário também é muito sobre o politicamente correto (ou incorreto).

O texto reflete um pouco sobre o papel da literatura no teatro hoje. Será que ainda é possível levar à cena um autor como Thomas Bernhard, que nos anos 1980 era dos mais montados e hoje praticamente desapareceu das temporadas teatrais de toda a Europa? Ele dizia coisas de tal forma inconvenientes e de maneira tão provocadora que foi cancelado porque hoje já não se pode dizer aquilo. Eu acho que é pena, mas há muita gente que acha que não.

A cultura do cancelamento é uma coisa que te chateia?

Esse gosto que ele tinha da provocação vai tendo cada vez menos espaço. Vivemos numa sociedade tão assética que já não há espaço para o prazer, o deleite, de dizer coisas para provocar, para escandalizar. Mas também por isso é que o Festival de Almada este ano abre com o Valha-nos Aristófanes! [¡Que salga Aristófanes!], da companhia Els Joglars, que é um manifesto contra a “arte vaselina”. Põem em cena o regresso à Europa do Mayflower, que é o barco que em 1620 levou os puritanos para a América. Portanto, para estes catalães estamos a assistir ao regresso dos puritanos. A metáfora é genial. Estamos a ser colonizados por este pensamento estúpido que torna impossíveis o teatro e a arte.

“Acho que só haverá inteligência artificial quando dermos uma ordem a uma máquina ou a um ente informático e ele se recusar a obedecer.”

A ideia de reflexão sobre questões controversas está sempre muito presente no Festival de Almada. Este ano vão ter um encontro sobre Inteligência Artificial e Criação Artística. É uma preocupação tua?

Não, é sobretudo uma curiosidade. Não sei absolutamente nada sobre inteligência artificial para além daquilo que vem nos jornais, mas é claro que não vivemos numa redoma, estamos atentos às inquietações das pessoas e ao que está a ser discutido e tem-se publicado tanta coisa sobre este tema e há opiniões tão díspares que, no que toca à criação artística, tenho bastante curiosidade e convidámos algumas pessoas para vir falar sobre isso. Eu, do meu ponto de vista, sou bastante cético, sou um otimista cético, que é uma expressão do José Saramago. Acho que só haverá inteligência artificial quando dermos uma ordem a uma máquina ou a um ente informático e ele se recusar a obedecer.

Achas que a desobediência é o princípio da inteligência?
Acho que a vontade é o princípio da inteligência, sim. Se houver computadores que escrevam poesia boa, contente da vida, quantos mais melhor, tenho sérias dúvidas, mas já que vivemos numa época em que a poesia está tão afastada da vida e dos palcos, se forem as máquinas a trazer-nos de volta a poesia, venham elas. Agora, também tenho a noção de que há coisas da tecnologia que não fazem bem à humanidade, porque criamos coisas para o nosso bem e criamos coisas para o nosso mal. Eu acho que as redes sociais são uma coisa que criámos para o nosso mal, tal como a bomba atómica… ou o sushi.

Com isso do sushi é que não concordo.

Claro. Vês, lá está uma coisa que não se pode dizer.

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