Viviane De Muynck, a dama do teatro belga vem ao Festival de Almada

Viviane De Muynck diz que uma das suas melhores atuações de sempre está em “O Quarto de Isabella”, com direção de Jan Lauwers. A peça integra o Festival de Teatro de Almada e está em cena no domingo

Bruno Horta in Observador07 jul 2018 notícia online

“O Quarto de Isabella” junta nove intérpretes em palco, mas tudo gira em torno da personagem Isabella Morandi, uma mulher cega e imperturbável, nonagenária bem vivida que passa os dias num quarto em Paris. Quem lhe dá vida é Viviane De Muynck, de 71 anos, atriz flamenga que muitos consideram o nome mais importante do teatro europeu atual.

A peça estreou-se em 2004 no festival de teatro de Avignon e desde então fez carreira um pouco por todo o mundo. Neste domingo, apresenta-se no 35º Festival de Teatro de Almada – às 22h00, na Escola D. António Costa, com entrada a 15 euros.

“Isabella foi criada para mim”, conta Viviane De Muynck ao Observador. Jan Lauwers, o encenador, queria uma versão feminina de “Zorba, o Grego”, personagem de um filme dos anos 60 e de um romance homónimo escrito pelo grego Nikos Kazantzakis. Zorba é o homem que passa por tudo e no fim da vida ainda tem coragem para dançar. Isabella, por Viviane De Muynck, também.

Provavelmente, é a personagem que faço há mais tempo. A peça tem 14 anos e nessa altura eu tinha outra idade, uma energia e um humor muito fortes, que ainda ali estão de certa forma”, diz a atriz. “Todas as personagens que vemos no quarto de Isabella só existem na cabeça dela. Estão ali todos os que ela conheceu e amou e todos os que já morreram. Isabella viveu acontecimentos históricos muito importantes e é essa viagem pelo século XX que faz a peça ir mais além. Isabella passou por muito, mas mantém a alegria de viver. Há muita alegria na peça mas também, como dizem os portugueses, muita saudade.”

Não é a primeira vez que “O Quarto de Isabella” vem a Portugal. Criação do grupo NeedCompany, de Bruxelas, foi o espetáculo de abertura do festival Alkantara, em junho de 2006. A própria Viviane De Muynck já tinha atuado na Expo’98 com os nova-iorquinos The Wooster Group e guarda de Lisboa a imagem de uma cidade “aventurosa” que é “uma porta aberta para o mundo”.

Este regresso faz parte da mais que provável última digressão da peça e a atriz espera a mesma comunhão com o público que deu longevidade ao projeto.

Os atores são incríveis, o Jan soube criar um espetáculo muito inteligente e cheio de amor. Essa magia em palco chega às pessoas. Há momentos em que contraceno com os outros intérpretes, mas na maior parte do tempo estabeleço um contacto direto com o público. Está tudo nos meus olhos. A ligação é tão profunda que quando eu choro os espectadores choram comigo. Quando me rio, eles riem-se comigo. Estamos no mesmo espaço, estamos no teatro. O teatro não é um país imaginário, é um lugar concreto de encontro. As deceções, a perda daqueles que amamos, os segredos que nunca revelamos, aquilo que nos vai no coração… O público sente isso. A personagem Isabella é universal”, explica Viviane De Muynck.

Nesta conversa telefónica a partir de Antuérpia, cidade onde nasceu e vive, a atriz mostra-se disponível para resumir uma vida cheia. Falando em inglês, começa pelas memórias de infância, quando ia ao cinema ver filmes de Michelangelo Antonioni e Vittorio De Sica, na companhia do pai.

Era um homem muito especial e feliz. Começou a trabalhar com 12 anos e morreu aos 92. Foi a única pessoa que conheci na vida que sabia perfeitamente o lugar que ocupava no mundo. Nunca lhe conheci sentimentos de inveja ou rancor”, lembra.

A paixão pelo cinema e pelo teatro levou-a a tornar-se atriz amadora na adolescência. “O cinema abriu-me uma janela para o mundo. Não éramos ricos, só tivemos televisão em casa muito mais tarde.” Mas essa paixão foi interrompida por influência dos pais, que consideravam a vida de atriz pouco edificante para a filha. “O teatro não dava dinheiro e tinha muito má reputação, dizia-se que era uma vida sem regras.”

Trabalhou como secretária numa empresa de reparação de navios, casou-se aos 23 anos com um homem de 41, engenheiro de automóveis e antigo campeão de boxe, que acabou por morrer sete anos depois. Entretanto, tinha nascido Michel, filho único, que morreu em 2013. (A vida da atriz é marcada pela tragédia e a personagem da peça é certamente autobiográfica.)

Aos 30, depois de perder o marido, decidiu refazer a vida e voltar à representação. Foi estudar no conservatório de Bruxelas.

Quis tornar-me atriz porque sabia que poderia fazer melhor do que aquilo que via em palco. Sabia que poderia fazer a diferença, sabia que tinha força para agarrar o público”, garante.

Em 1987, ganhou notoriedade quando deu vida a Martha de “Quem Tem Medo de Virginia Woolf?”, de Edward Albee. Na década de 90 juntou-se ao grupo NewCompany, que Jan Lauwers e Grace Ellen Barkey tinham fundado em 1986. Entrou no filme “Vincent e Theo”, de Robert Altman, sobre a vida dos irmãos Van Gogh, em 1990. “The Crossing”, de Nora Hoppe, e “Deus Existe e Vive em Bruxelas”, de Jaco Van Dormael, são apenas outros dois exemplos.

“O Quarto de Isabella” estreou-se em 2004 no festival de Avignon

Ao ver a atuação de Viviane em “O Quarto de Isabella”, a revista francesa “Les Inrockuptibles” surgeriu estarmos perante a mais importante atriz da Europa, o que para Jan Lauwers, na folha de sala, não é uma hipótese, mas uma certeza. Na imprensa belga tratam-na por “grande dame” do teatro. E ela não discorda.

É um título que não me assusta. Dá-me consciência da responsabilidade. As pessoas não esperam apenas que eu esteja bem em palco, esperam uma espécie de milagre e tenho de lhes dar esse milagre todas as noites. Nem sempre consigo, mas tento sempre lá chegar”, comenta. Sobre se se trata da sua melhor performance de sempre, acrescenta: “É provavelmente o meu melhor trabalho, mas isso deve-se também ao encenador e aos outros atores”.

Se o teatro ajuda a pensar a vida e se esta peça tem uma mensagem, Viviane De Muynck diz que “continuar a viver e seguir sempre em frente perante qualquer adversidade” é a mensagem.

Temos de aceitar que há coisas que nos ultrapassam e que não vamos mudar. Se não aceitarmos, viveremos na amargura. É preciso lutar pela renovação, saber aceitar a mudança, porque não há vida sem morte e não há amor sem perda”, reflete.

O tema atual do assédio sexual no meio artístico, principalmente na indústria do cinema, fica para o fim da conversa. O Observador pede opinião à atriz e ela responde que o assunto é complexo e não pode ser analisado em três os quatro frases. “Não é apenas uma questão de género, é uma questão de corrupção no exercício do poder por parte de muitos homens”, adianta. “Nunca, mas nunca, tive qualquer problema a esse nível, talvez por ter chegado à representação já depois dos 30 anos e não com 17 ou 18. Se alguém me dizia alguma coisa que me parecia desagradável, só tinha uma resposta: ‘fuck off’”.

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