Viagem num Sofá [Viagem de Inverno]

Viagem de Inverno de Elfriede Jelinek. Encenação: Nuno Carinhas; Intérpretes: Ana Cris, Flávia Gusmão, Teresa Gafeira; Tradução: António Sousa Ribeiro; Cenografia e figurinos: Nuno Carinhas; Desenho de luz: Nuno Meira. Companhia de Teatro de Almada.

in Sinais sem linha 05 Fevereiro 2020 | notícia online

Bons atores conseguem fazer algo interessante e belo até de uma lista telefónica. Espécie de lista telefónica poética ou de bula de antidepressivo enumerando os efeitos adversos, o texto de Elfriede Jelinek curaria insónias a cocainómanos. Especialmente se recitado durante duas horas e vinte. O género de teatro de paisagens poéticas tem momentos lindíssimos quando em conjunção com outros momentos dramáticos como a introdução de um agon (conflito). Contudo, por si mesmo e forçado por extenso período não tem mais eficácia do que a imagem do Grand Canyon no screensaver de um computador. Não perde a beleza, mas a sua presença torna-se rotineira. Salvou-se deste pesadíssimo texto lírico quem tem realmente prazer com o trabalho de ator. Por aí houve muito por onde nos deleitarmos. As três atrizes deste espetáculo (Ana Cris, Flávia Gusmão e Teresa Gafeira) escolheram três métodos diferentes de entregarem as centenas de páginas de prosa poética decoradas: um teatro mais físico, um outro centrado nas expressões faciais e um de enfase no textual. O cenário ofereceu-se-nos demasiado simples para uma obra com tantas possibilidades de simbolismo. Duas mesas em L, algumas cadeiras, uma chaise-longue, três portas velhas, várias estantes de leitura e dois cavaletes. Atrás de um vidro surgiu uma pequena árvore desfolhada, como uma Yggdrasil que seca perdendo a sua vitalidade de axis mundi.

Em conjunção com muitos pontos fortes, o ponto vulnerável que encontramos aqui sucede na maioria do teatro feito exclusivamente de paisagens poéticas. Quando o velho Bukowski recitava a sua poesia do quotidiano em cafés e livrarias, fazia-o à medida que se embriagava. A sua pose de Velho do Restelo crescia com a alcoolização e com os insultos ocasionais aos hecklers. A sua paisagem poética do quotidiano tinha muito de tensão dramática. Era um desafio saber se “Buk” terminaria de pé a récita ou se andaria à pancada com os seus fãs. Essa personagem dos bairros urbanos pobres dos E.U.A. era invocada e o público participava nessa construção com as suas provocações. Também a nobilizada Jelinek nos oferece uma poesia do quotidiano. Mas as suas intermináveis divagações estilo stream of consciousness sobre o tempo, o passado, a morte e a sexualidade, e o seu pesadíssimo neobarroquismo, não transmitem a rebeldia que seria interessante trabalhar em palco. Como não o transmitem, também, por exemplo, o Livro do Desassossego, de Bernardo Soares ou The Waste Land, de T. S. Eliot, apesar de se tratar de obras primas dentro do género. Porquê então um espetáculo baseado neste texto? Para os atores, encenador e demais colegas é um grande desafio. Entregam-se a ele por uma enorme paixão ao teatro, procurando elevar a sua própria fasquia. Como grandes profissionais que são, conseguiriam transformar até uma lista de compras em teatro. Como escultores de cena desejam dar vida a uma rocha, como alquimistas transformar em ouro o ferro. Mesmerizam-se ante a possibilidade de um espetáculo feito de pura melopeia. Mas será tudo – mesmo efetivamente tudo – passível de ser dramatizado? Existem magníficos documentários poéticos e dramáticos sobre a vida dos animais e plantas. Até sobre a sexualidade dos insetos. Mas desejaríamos vê-los num palco? É uma discussão antiga entre a academia, sabemo-lo, mas falemos do ponto de vista do espetador.

Enquanto espetador, voltaria a ver este espetáculo não por ter nele o texto de Jelinek (que prefiro ler sentado no sofá, como leio Pessoa), mas sim pelo fantástico trabalho de ator que aqui é alcançado. A fasquia foi de facto colocada muito alto para estas maravilhosas atrizes e elas planaram lá no firmamento, bem acima dela. Há tanto a estudar e a apreciar em cada gesto ou palavra. Para os profissionais, estudantes e outros entusiastas das artes performativas é um espetáculo mandatório. Para os amantes da poesia, podem aqui ver tomar forma algumas imagens que só conhecem como melodia e emoção. Para todos os outros será como ouvirem algo semelhante ao Livro do Desassossego sem a possibilidade de se desassossegarem.

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