Uma noite na Praça da República

Mini Teater (Eslovénia). De Édouard Louis. Encenação Ivica Buljan.
Festival de Almada. Fórum Municipal Romeu Correia. Último espectáculo foi ontem

Rui Monteiro in Público, 06 Julho 2021

Rapaz encontra outro rapaz a meio da noite. Engraçam um com o outro. Conversa puxa conversa vão para casa de um deles, bebem um pouco mais, revelam um pouco sobre quem são e de onde vêm. Vão para a cama. E, quase manhã, nas despedidas, entre abraços e carícias, o visitado descobre a falta do iPad e do telemóvel. Confrontam-se. A coisa corre mal. Uma pistola surge nas mãos da visita e com ela ameaças, gritos, empurrões, socos, acusações, uma violação. É assim História da Violência, isto é, seria isto, não fora o autor dissecar o acontecimento à procura da sua verdadeira razão de ser como quem vai ao inferno e volta.

Mais pormenor, menos pormenor, foi o que aconteceu a Édouard Louis (n. 1992), uma véspera de Natal, na Praça da República, em Paris, quando conheceu um jovem de origem argelina que tornou uma noitada que parecia eroticamente estimulante naquela espécie de pesadelo que se transporta como um trauma. Uma ferida que o espírito não sara, que bate de frente com a incompreensão e o distanciamento dos outros, que, no romance que esta peça adapta, se transforma numa re?exão sobre a homofobia e o racismo e a xenofobia, e tenta ir ainda um pouco mais além, quase filosoficamente, na busca de uma razão para a violência como exercício de poder. Quase como esta encenação de Ivica Buljan para a companhia eslovena Mini Teater, com Saša Pavlin Stoši , Petja Labovi , Benjamin Krneti , Robert Waltl e Boris Vlastelica, criada como uma sucessão de murros no estômago sem moral à vista.

De maneira só aparentemente linear, o encenador põe em palco as personagens e as suas respectivas perspectivas sobre o acontecimento, usando, por exemplo, a irmã da vítima para rebuscar razões na infância vivida lá nas berças do Norte de França, salientando a diferença do irmão em relação aos outros e ao lugar, manifestando considerável dose de compreensão e compaixão; no entanto, deixa no ar um “bem te avisei” que é muito mais uma condenação do que um “tem cuidado no que te metes”.

Mais importante do que o contexto, porém, é o caminho do protagonista, aquele momento em que a vítima se começa a sentir culpada e procura na cultura que o educou e criou uma razão para o desencadear de tamanha e desbragada violência; o momento em que começa a ver o que sofreu como resposta à opressão e discriminação sentida pelo outro. É um processo doloroso, com uma ponta de masoquismo à espreita, recheado de não-ditos, que, realmente, põe em causa muitos dos mecanismos que movem as sociedades e contaminam os seus cidadãos, mas em que subsiste do original uma subtileza elegante, apesar do esforço da direcção de Buljan em manter a cena crua e suja, preferindo outros instrumentos dramáticos e cénicos mais, digamos, espectaculares, mesmo quando supér?uos, ou até confusos para o desenvolvimento do entrecho se tornar uma narrativa imaginativa e não apenas um acumulado de cenas, interpretadas com vigor, é certo, com mas uma energia que parece nascer mais da vontade dos actores do que do desejo de distanciamento do encenador.

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