«Um gajo nunca mais é a mesma coisa», de Rodrigo Francisco

Domingos Lobo in Avante 21 Outubro 2021

No programa sobre a peça Nunca Mais é a Mesma Coisa, texto e encenação de Rodrigo Francisco, para a Companhia de Teatro de Almada, pergunta-se: o que sobra da guerra hoje? Sobra, digo eu, uma memória ferida, a longa expiação dos que a viveram e não conseguiram fazer, do trágico desses dias insanos, a catarse. Herdámos, no entanto, para além das cicatrizes, um vasto espólio literário que tematiza, de modo crítico, a guerra colonial e, por extensão, põe em causa o poder fascista que foi incapaz de resolver politicamente, ao longo de 13 anos, esse conflito, que deixou um lastro de milhares dé mortos e estropiados, de traumas geracionais que o tempo ainda não curou.

Os autores que viveram por dentro o conflito, no cerne da ignomínia e do absurdo (estão publicados cerca de 200 títulos), souberam dar testemunho dessa experiência única – aos vinte anos -, fazendo-o quase sempre de forma inovadora, construindo uma original e vibrante fala testemunhal e de denúncia. É a guerra que os molda, é essa crua, ingente realidade, com todo o seu cortejo de misérias, horrores e abjecções, que os leva à escritanum primário impulso de indignação, até à tomada de consciência, que toma os títulos mais significativos dessa colheita patrimónios de luta, resistência e revolta.

Se o cinema ea televisão, com os limites conhecidos (atrelados ou não à literatura), produziram estimáveis abordagens sobre o conflito colonial, cujas foram, até, êxitos de público (vejam-se os filmes de João Botelho, Ivo Ferreira, Rui Simões, Manoel de Oliveira ou Joaquim Leitão), o mesmo não aconteceu com o teatro. Peças como Ódio, de Jorge Humberto Pereira, ou Um Jipe em Segunda Mão, de Fernando Dacosta, tiveram transposições cénicas quase marginais, não atingindo o público que esses projectos mereciam ea qualidade dos textos justificava.

Um Gajo Nunca Mais é a Mesma Coisa, de Rodrigo Francisco, dramaturgo habituado às duras linguagens dos quotidianos agrestes, pega com acerto e coragem num tema que ainda transporta, na memória dos que a viveram, as feridas expostas desses tempos bárbaros, erigindo um inesperado e inquietante espectáculo, carregado de sinais e avisos à navegação.

O autor/encenador desata, sem evasivas, os fantasmas de uma geração que sofreu na carne, no imaginário, na psique, de forma traumática, as consequências das políticas coloniais de Salazar e Caetano, trazendo ainda, tantos anos volvidos, a guerra nos bolsos.

Uma guerra que os impediu de viver, de estabelecer relações sólidas com os que ama, que os leva a refugiarem-se em almoços nostálgicos, em celebrações doentias. A encenação de Rodrigo Francisco transportanos para um espaço sombrio, para uma atmosfera claustrofóbica da qual as personagens tentam libertar-se, mas esse espaço circular é o espaço da memória e do seu insuportável peso, dos horrores da guerra, das interrogações que os sufocam de perplexidade: O que fizemos de bem, afinal, neste processo todo? E o rememorar da insídia, desses anos de medo e de morte, de sangue espalhado pela savana (de quem será esse sangue?), as noites de sobressalto ao som das costureirinhas dos turras, apenas contribui para abrir mais a ferida, para acender nas veias esse rio que não estanca, como escreveu Fernando Assis Pacheco. Que homens fomos, em que homens nos tomámos: Saímos heróis, regressámos facínoras. Uma geração que vive e habita um passado fixado em fotos de um álbum de destroços, a lembrar uma bela e dramática canção de Sérgio Godinho.

A peça expõe e inquire, não se limita (o que já seria bastante) ao relato do sórdido desses anos, confronta-nos com a nossa própria responsabilidade cívica, através da personagem feminina (lúcida até ao desespero), com uma pergunta incómoda e actualíssima: O que é que nós fizemos de mal, para termos agora estes fascistas todos de volta?

Referência para as magníficas, irrepreensíveis interpretações de um grupo de actores de primeira-água, cúmplices habituais nas encenações de Rodrigo Francisco: Afonso de Portugal, João Farraia, Lara Mesquita, Luís Vicente e Pedro Walter.

Rodrigo Francisco, o autor e o encenador, está, uma vez mais, de parabéns pela coragem de escrever um texto assim, declarativo e implacável, como no-lo dá a ver, pela dimensão social implícita, pela forma singular como define as realidades trágicas do nosso passado recente, colocando-nos perante o menos benévolo dos tribunais: o da nossa consciência.

A guerra colonial deixou um lastro de milhares de mortos e estropiados, traumas geracionais que o tempo não curou.

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