UM GAJO NUNCA MAIS É A MESMA COISA

Texto e encenação de Rodrigo Francisco

CO-PRODUÇÃO ACTA - A COMPANHIA DE TEATRO DO ALGARVE E COMPANHIA DE TEATRO DE ALMADA

Aminha mulher chorava por mim, porque um soldado não chora”: diz o protagonista, soldado à força, como os demais, numa guerra que foi sempre mais de outros do que de quem nela combatia. Em Um gajo nunca mais é a mesma coisa, o espectador encontrará um conflito bélico já bem distante, que nunca constituiu uma verdadeira memória colectiva, antes uma ferida aberta que se sente na carne, mas que ninguém quer ver, ninguém quer tratar. No evoluir deste espectáculo de teatro, convoca-se um cenário de guerra, onde estão soldados duplamente colocados ao abandono: abandonados, enquanto combatem, abandonados no estatuto de ex-combatentes.

Guerra colonial, colonialismo, o fantasma cada vez mais real da extrema-direita, o racismo, globalização e essencialmente a leitura de um passado à luz de um presente e o modo como estes se enfileiram na esteira de um futuro, são os vértices em que se move a peça. É um poliedro de pontos de vista, que se expõem no texto e na dramaturgia em palco; sempre oscilando entre um passado que se viveu (“se não estivermos cá quem contará a história?”) e um presente que o revive e, mais do que isso, o reconfigura. O protagonista, em palco, literalmente, é sempre duplo: o soldado na guerra e nos vários presentes por que passou, após o seu regresso à capital, sempre com a “guerra dentro do bolso.”

“Por conseguinte, por conseguinte”: é aos solavancos, com este bordão de linguagem repetido como um mote pela personagem principal, que se conta, rememora, remói, a história. No entanto, a narrativa da guerra colonial não é, nunca foi, feita nem de continuidade, nem de lógica causal interna, mas de saltos de perspectiva, em constante confronto e clivagem: a vivência dos ex-combatentes no passado; a memória desse passado e a sua presentificação permanente; a visão exterior da condenação subliminar, o olhar externo crítico, aqui, protagonizado pela personagem feminina, estrangeira, racializada, a realizar um pós doutoramento acerca do colonialismo e por isso tão longe das ambiguidades, não da guerra colonial em si, mas do soldado anónimo que a viveu sem escolha: “saímos heróis, regressamos facínoras”, diz o protagonista em dado momento, quando na verdade no teatro de guerra já nem heróis almejavam ser: “só queríamos voltar de lá vivos”.

Chegados ao fim do espectáculo, não é ao passado que o espectador se deixa aprisionar. Qual coro grego, escondido e lúcido, fixando o presente, interpretando-o, a pergunta é feita pela personagem feminina (mulher inglesa, de origem africana, tentando perceber de fora, num mundo globalizado, o colonialismo e dentro dele o caso português: “O que é que nós fizemos de mal, para termos agora esses fascistas todos de volta?”. A peça não dá respostas, mas a pergunta fica a ecoar, assim como o seu reverso, em cada um de nós: “o que fizemos de bem, afinal, neste processo todo?”. | Pedro Barros

Rodrigo Francisco, dramaturgo, encenador e director artístico da Companhia de Teatro de Almada e do Festival de Almada, fez a sua formação teatral com Joaquim Benite, de quem foi assistente de encenação.


Eu tinha o crachá, eu tinha o curso, mas só fui Comando quando morreu o meu primeiro homem. Como é que se transforma a vida em morte?
Enrolado no capim, morto, o corpo humano parece uma coisa pequena. E de repente lembrei-me da cerimónia do içar da bandeira, quando se misturou tudo na minha cabeça: Afonso Henriques, Aljubarrota, Nuno Álvares Pereira a disparar contra os turras, Vasco da Gama a atracar as naus na Baía de Luanda. O Comando é exemplo. O Comando é audaz. A sorte protege os audazes.

Excerto de depoimento de um ex-combatente

01 a 31 OUTUBRO, 2021 | SALA EXPERIMENTAL

qui a sáb às 21h00
qua e dom às 16h00

Duração aprox.: 90min. | M/16

Intérpretes Afonso de Portugal, João Farraia, Luís Vicente, Pedro Walter, Lara Mesquita
Cenografia Céline Demars
Luz Guilherme Frazão
Música Afonso de Portugal
Som Daniel Mendrico
Figurinos Ana Paula Rocha
Montagem Carlos Janeiro, Paulo Horta, Ivan Teixeira, Daniel Polho, Filipe Neves
Agradecimento Exército Português
Agradecimento especial Alexandre Pinheiro, Manuel Mendonça, José Vieira Casal

Este espectáculo tem som de tiros, de helicópteros e luz estroboscópica

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