Sardenha: uma ancestral energia dionisíaca

O trágico caminho que Macbeth descreve até ao trono da Escócia é deslocado por Alessandro Serra para a Sardenha dos carnavais – inquietante, fascinante e grotesca

Gonçalo Frota in Público, 9 Julho 2019 notícia online

Ninguém parece saber muito bem que origem terá e há quanto tempo durará. Dir-se-ia que existe desde sempre, com essa mesma natureza perturbadora, tão fascinante quanto ameaçadora, como se juntasse vida e morte num só sopro, numa tradição com máscaras grotescas e comportamentos que não conhecem limites. O Carnaval — ou os vários carnavais, que se estendem por mais de um mês, avançando por várias localidades — na região de Barbagia, na Sardenha, convoca personagens que desfilam pelas ruas num ritual pagão misterioso, em que o perigo parece estar sempre presente atrás das máscaras e de um sentido oculto, alimentado por cantos e danças invariavelmente infiltrados por alguma desordem e por lendas como a de Ilonzana, mulher velha, feia e trajada de negro que, na localidade de Ottana, se acredita ser responsável pelos destinos de homens e mulheres, podendo matar quem se recusar a pagar-lhe uma bebida.

No decurso de uma reportagem fotográfica sobre os carnavais de Barbagia, em Fevereiro de 2006, Alessandro Serra pensou pela primeira vez juntar aquele ambiente à obra de Shakespeare. Andava em perseguição dos carnavais e do canto a tenore (canto coral de tradição sarda) em Lula, Bitti, Orgosolo e Gavoi. Esse sardo específico (sardo logudorese) do canto a tenoreera também a língua do seu pai, “um som áspero, seco, aguçado”. “Uma língua crua, ainda assim incrivelmente musical”, explica ao Ípsilon. “Foi um som que acompanhou os verões que passei em casa dos meus avós. Em casa falava-se sardo, comia-se sardo, bebia-se sardo, cheirava a queijo e a ricotta. O meu avô vestia-se de nobre barbaricino, sabia de casu marzu [queijo tradicional sardo, cujo processo de maturação emprega larvas vivas de mosca, pelo que as regras sanitárias obrigam a que só possa ser adquirido no mercado negro da Sardenha] e falava uma língua misteriosa e terrível.”

Em criança, Alessandro compreendia a língua mas não ousava falá-la. Assustava-o por parecer-lhe “uma língua mágica e poderosa”, capaz de agir sobre quem a falava e quem a escutava. Daí que, em 2006, ao reencontrar-se com esse dialecto que tinha apavorado a sua infância, soou-lhe “perfeito para contar o destino trágico” de Macbeth. Adaptado à realidade local sardenha, Macbettu estreou-se em 2016, na encenação de Serra para o Sardegna Teatro, falado em sardo e impregnado de um ambiente telúrico e profano que faz abater uma sombra sobre todo o espectáculo, realçando o perigo constante, a morte iminente, numa encenação que lança os actores para uma interpretação física e visceral. “E aquele sardo particular está inscrito em mim, como um eco longínquo que me invade em cada sílaba pronunciada pelos actores”, confessa Alessandro. Esse sentido trágico está, por isso, manchado pelo medo desde o primeiro instante. Como nos carnavais sardos, instala-se a ideia de que tudo pode acontecer e que, assim sendo, irá mesmo acontecer.

Macbettu é também assaltada pelos sons dos chocalhos e dos instrumentos antigos dos carnavais de Barbagia, está cheia “das peles dos animais, dos sopros e da cortiça” que são imagens soltas da paisagem popular sarda e que se manifestam sob várias formas em palco. Assim como não escapa “à potência dos gestos e das vozes, à proximidade de Dionísio e, ao mesmo tempo, à incrível precisão formal das danças e dos cantos, às máscaras sombrias, ao sangue, ao vinho tinto e às forças da natureza domadas pelo homem”. E, talvez mais do que tudo o resto, acolhe o negrume invernoso que se abate sobre a Escócia de Shakespeare e esta Sardenha carnavalesca resgatada por Alessandro Serra.

Passados três anos sobre a estreia, ainda hoje as “surpreendentes analogias entre a obra-prima shakespeariana e os sujeitos e as máscaras da Sardenha” seduzem o encenador. Por isso, sublinha, não há qualquer necessidade de contaminação entre os dois universos, uma vez que os arquétipos e os mecanismos da natureza humana que encontra no texto do bardo inglês descobre-os também na paisagem da ilha. Essa paisagem em que as pedras podem tornar-se tanto armas como uma fonte de som nas pietre sonore — as pedras sonoras — de Pinuccio Sciola, esculturas em calcário ou basalto que produzem um som enigmático quando friccionadas pelas mãos ou pequenos objectos. Essa paisagem em que os homens podem, diante do horror, surgir animalescos, quase porcos que grunhem e se deixam alimentar pela visão do poder numa das cenas mais impressionantes de Macbettu.

Tamanha fisicalidade, reconhece Alessandro, respeita a um desígnio simples que tinha em mente: “libertar uma pura e ancestral energia dionisíaca”. É esse o mote de Macbettu, espectáculo que faz dos corpos dos actores uma imagem de cedência aos impulsos mais primários, em quebra diante das tentações mais terrenas — não esqueçamos que Macbeth é o perpetrador e a vítima também de uma contínua eliminação daqueles que se encontram entre si e o trono da Escócia.

Balentia

Com um elenco masculino, à semelhança do que acontecia no teatro do período isabelino, Alessandro Serra adopta as regras dos carnavais de Barbagia. As várias dimensões da vida rural ritualizadas nesta tradição sarda, em que os homens se podem cobrir de peles de ovelhas ou assumir uma forma demoníaca, desaguam sempre em celebrações que se tornam momentos de transe colectivo. “Mais do que interpretados”, justifica o encenador, “os carnavais sardos são encarnados por homens”. Decidiu, por isso, reescrever o texto omitindo as personagens femininas com excepção de Lady Macbeth e das três bruxas, convencendo-se de que não resultavam dessas opções feridas letais nas palavras de Shakespeare. Lady Macbeth, figura de um calculismo maquiavélico, incorpora todas as mulheres perdidas no texto, mas troca essa dimensão de orquestradora e manipuladora pela mediação entre vida e morte. “Mais alta e mais forte do que os homens”, descreve Alessandro, “ela é o símbolo da força gestacional e do poder feminino.”

PÚBLICO -
Foto ALESSANDRO SERRA

À mesa com a equipa artística e técnica que ergue Macbettu todas as noites, fala-se também da importância da balentia barbaricina na leitura desta versão sarda. É um termo que encerra valores culturais ligados ao papel ancestral do homem, como elemento que perante a comunidade se devia fazer respeitar, autorizando — em tempos idos — a vingança como medida de retaliação legítima em defesa da sua honra. Cauteloso nesta ligação, Alessandro indica que “até no caso da violência barbaricina, até mesmo no banditismo, há um lado romântico e identitário que acompanha o aspecto criminal”. “Tem de se ter muito respeito e não instrumentalizar. É que o risco com este género de especulação é faltar ao respeito do tema, das pessoas e das tradições, reduzindo tudo a folclore.”

Ruído e fúria

Ainda a trama está no início quando as três bruxas que aparecem a Macbeth vaticinam o seu destino, de heróico guerreiro até Rei da Escócia. Essa visão do futuro, adquire a força de uma praga ou de uma maldição, colocando Macbeth num caminho de espinhos até cumprir com tais palavras. Em Macbettu, esse é ainda um momento em que o humor picaresco vai alastrando pelo palco, em que as bruxas são matrafonas emprestadas pelo absurdo e pelo ridículo. Mas na escalada dos crimes e da violência, há-de chegar a certeza de que Macbeth é “tudo agora, Rei, Cawdor, Glamis, como prometeram as Irmãs Fatais”, tendo “jogado da maneira mais vil” para alcançar o seu desígnio. “Sobre a minha cabeça”, lamenta-se Macbeth, “puseram uma coroa seca e na mão um ceptro estéril, pois não tenho filhos.”

Quando os pensamentos de morte se tornam insuportáveis para Lady Macbeth, esta perde o sono, enlouquece e apaga-se. Macbeth, lembra Alessandro, “bate no fundo, olha a morte nos olhos e fala com ela como o mais lúcido dos filósofos”. Dizendo então que a vida é “uma história contada por um idiota, cheia de ruído e de fúria, que não significa nada”. Ruído e fúria que invadem Macbettu até haver espaço para pouco mais. Até ficar a martelar na cabeça aquela voz tétrica que chama “Macbettu, Macbettu”, num sardo tão terrível quanto terá soado na infância de Alessandro Serra.

O Ípsilon viajou a convite do Festival de Almada

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