Rogério de Carvalho reencontra Fassbinder

Muitos anos depois de O Paraíso Não Está à Vista, o encenador volta a trabalhar sobre a obra do cineasta alemão. O Medo Devora a Alma está em Almada até 27 de Novembro.

Gonçalo Frota in Público, 28 Outubro 2022 | notícia online

Rogério de Carvalho confia muito na palavra. Sabe que é a sua matéria-prima essencial enquanto encenador, e que tem por missão mostrá-la em toda a sua limpidez, preenchendo os espaços em volta sem lhe roubar o protagonismo. E a palavra de Rainer Werner Fassbinder, que já lhe inspirara um espectáculo inscrito na história do teatro português – O Paraíso Não Está à Vista, levado à cena pelo Maizum Teatro em 1984 –, atrai-o sobretudo pela clareza e pela “intensidade que põe nas acções praticadas”. Depois, claro, como acontece agora em O Medo Devora a Alma, que esta noite se estreia no Teatro Municipal Joaquim Benite, em Almada, onde fica até dia 27, Fassbinder estimula-lhe este desafio concreto de transformar um texto nascido para o cinema numa linguagem teatral que pede ao espectador para ver também através, precisamente, da palavra.

“No cinema há a imagem, que ajuda imenso a descodificar o contexto. No teatro às vezes o contexto está no espaço vazio, e é necessário preencher esse vazio através de um trabalho de tensões e de contenções”, compara. “Por outro lado, como o Fassbinder é um grande encenador, a sua escrita facilita, porque ele põe no texto aquilo que faria se estivesse a encená-lo. E aqui o que me seduz são as situações políticas e sociais que ele coloca na narrativa.”

Recuemos até 1974. Quando o realizador alemão estreou O Medo Devora a Alma, prestava a sua homenagem ao mestre dos melodramas de Hollywood, Douglas Sirk, adaptando O que o Céu Permite para a Alemanha de então. Se Sirk construíra, em 1955, um filme em torno de uma viúva abastada que se apaixonava pelo seu jardineiro, um homem consideravelmente mais novo, desencadeando uma série de objecções, tanto pela diferença de idades quanto pelo fosso de classe social entre os dois, Fassbinder reinventou a história fazendo da sua viúva uma empregada de limpeza e do jardineiro um operário árabe imigrado.

Rogério de Carvalho viu o filme de Sirk “há muitos anos”, mas prefere claramente o discurso adoptado por Fassbinder. “O filme do Sirk é mais [sobre] a história amorosa. E nós não podíamos ter esse caminho.”

A peça tem início com a entrada de Emmi (Teresa Gafeira) num bar, para se abrigar da chuva. Passa todos os dias por aquele lugar, mas nunca tinha ido para além da porta, e não pode deixar de reparar que se escuta música árabe. Também há música alemã na jukebox, explica-lhe a empregada do bar (São José Correia), “mas claro que eles preferem ouvir música da terra deles”. E assim, num instante, ficamos a saber que aquele é um lugar de encontro para imigrantes no final das suas jornadas de trabalho – um pequeno espaço de respiração antes de recolherem aos arrabaldes e se fecharem em quartos partilhados com mais cinco ou seis trabalhadores precários nas mesmas vidas ligeiramente acima do patamar da sobrevivência.

Enquanto Emmi se dedica à sua bebida, o grupo que ali se encontra provoca Salem (Cláudio da Silva), trabalhador marroquino, a “dar um pé de dança com a velha”. Salem não se acanha, dirige-se à mesa e diz a Emmi: “Tu sentada sozinha. Dá tristeza muita. Sentar sozinha não bom.”

Quando os dois se levantam para dançar, são, afinal, duas solidões que se encontram. E desse encontro há-de nascer uma relação olhada de soslaio e com desprezo por todos quantos fazem parte da vida de Emmi – os filhos, os vizinhos, o merceeiro, as colegas de trabalho. Rogério de Carvalho sublinha esta condenação social constante através de uma solução cénica em que as personagens que circundam o casal (interpretadas por Catarina Campos Costa, David Pereira Bastos, Júlio Mesquita, Laura Barbeiro, Lavínia Moreira, Maria Frade, Miguel Elói, Pedro Fiuza e São Jorge Correia) se colocam amiúde nos limites do palco, vigiando-lhes os gestos e as palavras. “Eles [Emmi e Salem] sentem-se na posição do observado”, diz o encenador. “E o passado e o presente – mesmo quando não estão lá – surgem através das personagens anteriores. Procurei colocar isto numa gramática formalista, e não numa gramática de conteúdo.”

Ao porem fim a uma solidão afectiva, Emmi e Salem desaguam numa outra solidão – social. Porque se vêem isolados dos mundos em que viviam. Ele não é aceite no novo meio em que se move, ela é ostracizada por todos aqueles que, mais do que inquietados pela diferença de idades, não concebem que possa ter querido juntar-se a um pobre imigrante árabe. E a mesquinhez revela-se depois na sua plenitude quando Emmi volta a ser procurada por todos, no momento em que os seus próprios interesses disso dependem. Talvez a derradeira solidão aqui seja, afinal, essa revelação: a de que a aceitação depende não de quem se é, mas daquilo que se tem para oferecer aos outros.

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