Resistir em palco

O Festival de Almada chega à 30.ª edição sem o seu criador, Joaquim Benite, mas com a mesma energia e o mesmo gosto pelo risco que o caracterizava.

Não gostava de posteridades, disse-o várias vezes. E justificava também assim a sua dedicação ao teatro, efémero por natureza. Mas quando, este ano, começar o Festival de Almada, é nele, Joaquim Benite, e no que nos deixou de herança, que todos vão pensar. De 4 a 18 de julho, como sempre, Almada e Lisboa recebem peças de teatro portuguesas e estrangeiras, que nos mostram diferentes linguagens de palco e diferentes formas de fazer teatro – foi essa uma das marcas que Benite deixou no festival que criou em 1984, ele que acreditava não dever o teatro guiar-se por um pensamento único. Se existe uma ideia comum a esta 30.ª edição é a de que, mesmo sem o seu “mestre”, o festival não pode perder-se. «A falta do Joaquim é uma gaveta que não abro. Mas à tristeza profunda alia-se uma energia para conservar o que ele fez. A nossa responsabilidade é manter este projecto artístico, não o deixar cair e mesmo desenvolvê-lo», diz Rodrigo Francisco, atual diretor da Companhia de Teatro de Almada e do Festival de Almada, o maior e mais prestigiado do País. Não baixar os braços era, aliás, característica de Joaquim Benite e, talvez por isso, esta edição espelhe tudo aquilo em que o encenador acreditava. «Quando as pessoas se retraem porque há crise, a mim apetece-me desenvolver mais trabalhos para reagir às condições adversas», dizia Benite à VISÃO, em 2010. «Quando se trata de crise, discute-se muito a economia, os investimentos, os capitais, mas o capital mais importante é o humano. Aquilo que devia ser mais bem utilizado e rentabilizado em alturas de crise é justamente o que é mais desprezado: as pessoas», continuava. Por isso, o Festival de Almada centra-se, também como sempre, nas pessoas: em Joaquim Benite, que será lembrado com uma instalação, um colóquio, o lançamento de uma biografia e um documentário («mais do que uma homenagem, serão momentos de reflexão», nota Rodrigo Francisco), e também noutros «mestres», encenadores e atores, portugueses e estrangeiros, com uma importância que convém, mais do que nunca, sublinhar, acredita o diretor do festival. Pelos palcos de Almada e Lisboa, vão passar, por exemplo, duas encenações de Peter Stein (uma delas com o ator Klaus Maria Brandauer), uma peça encenada por Emmanuel Demarcy-Mota, uma outra interpretada por José Luis Goméz, e também o trabalho mais recente do Teatro da Cornucópia, de Luis Miguel Cintra. Ao todo, serão 28 espetáculos para ver (mais dez do que no ano passado), seis dos quais em estreia, num festival que nunca chegou a ter recursos financeiros compatíveis com a dimensão que alcançou mas que, nem mesmo em ano de crise, perde o gosto pelo risco. «Como prevíamos o que aí vinha, juntámo-nos àqueles que pensam como nós e preparámo-nos para resistir, apresentando uma das melhores programações dos últimos anos», escreveu Rodrigo Francisco, na apresentação desta edição, encarando-a como um «ato de resistência».

Pensar e mudar o mundo
Em palco, estarão vários temas atuais, prementes – ou não defendesse Joaquim Benite o teatro como «fórum de reflexão», um lugar «onde se discute sem limites a multiplicidade dimensional do ser humano», como o definiu, numa entrevista ao Jornal de Letras. Haverá textos de Ibsen, de Beckett ou de Strindberg, tal como de autores contemporâneos, numa escolha sem temática definida, mas com o denominador comum que, tanto o novo como o antigo encenador e diretor de Almada acreditam ser o fundamental no teatro: a capacidade de questionar e fazer refletir. Não é um acaso, assegura Rodrigo Francisco que, além do teatro nórdico, o festival apresente espetáculos de cada um dos chamados PIIGS (Portugal, Itália, Irlanda, Grécia e Espanha), numa tentativa de perceber «até que ponto espelha a realidade dos países».

E se Joaquim Benite via os teatros como «refúgios de liberdade» para pensar e mudar o mundo, a equipa que deixou em Almada segue-lhe os passos. «Acreditamos, porque no-lo ensinaram, que um público mais informado e mais exigente reivindicará, num futuro próximo, aquilo que lhe é devido», afirma Rodrigo Francisco, reconhecendo, nesta edição, o seu próprio olhar, que Benite «adestrou até onde pôde».

Uma vez mais, e como sempre, serão duas semanas sem descanso e, assim se espera, inquietantes. Como no espetáculo Noites Brancas, em que Mónica Calle, Paula Diogo e Sofia Dinger nos propõem que passemos literalmente uma noite e branco, numa reflexão sobre «povo, poder e revolução» e sobre «as várias formas de posicionamento face à política e à arte». Porque é isso o teatro – tal como Joaquim Benite nos ensinou.

Gabriel Lourenço
in Visão, 27 jun 2013

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