QUEM É HÉCUBA PARA ELE E ELE PARA HÉCUBA?

Adriana Aboim

13 MAIO, 2012 | SALA EXPERIMENTAL

Afragilidade humana tem a sua contrapartida na maravilhosa dignidade de que só o ser humano é capaz, e é nessa ambiguidade que reside a beleza trágica.
Frederico Lourenço

Na tragédia de Eurípides, Hécuba surge sozinha, no meio da destruição provocada pela guerra de Tróia, perdida nas ruinas do reino que viu nascer. Sem justificação coerente, sem preparação, vê partir aqueles que mais ama: o marido Príamo com quem viveu toda a vida, a filha Polixena sacrificada às mãos do inimigo, o filho Polidoro morto à traição, e todos os outros filhos que gerou. Hécuba personifica a mãe, a fertilidade, como uma grande incubadora que prepara vidas, que prepara o futuro testando assim a própria mortalidade. No entanto, toda esta esperança de vida é destruída pela crueldade dessa mesma vida, por opções humanas estéreis como a ganância, a sede de poder e outras fraquezas que confrontam o homem em toda a sua incoerência.

Como sobreviver quando todos os alicerces são destruídos, as crenças desfeitas, quando o nada justifica o nada, quando tudo vale na corrida da sobrevivência? Como agir?

Os destroços da guerra acompanham as mulheres que ficam, as que se pensavam passivas, oprimidas, as que se pensavam frágeis, incapazes de ação. No entanto a fragilidade desarma as certezas e a racionalidade contida. A fúria, o instinto e a animalidade escondida geram um novo movimento de instabilidade e inquietação. Hécuba torna-se a mulher-cadela, e vinga os seus filhos com as suas próprias mãos. Deixa de haver aceitação ou compreensão, solta-se a medusa (a personificação da fúria feminina, que vem desencadear tudo o que tentaremos em vão compreender). Mas talvez não seja, afinal, para compreender ou explicar que aqui estamos, mas antes para abarcar, deixar entrar, olhar algo que faz parte daquilo que realmente também somos.

Até onde conseguiremos ser vítimas, até onde a opressão? Quais os limites da capacidade humana de aceitação?

Seguindo a linha das heroínas trágicas gregas, centrada na força das várias figuras femininas que protagonizam algumas peças, pretende-se com este trabalho realçar sobretudo a marca humana naquilo que esta poderá ter de mais controverso e paradoxal, na convivência de polos que se atraem e afastam, mas que coexistem em cada um de nós, nas nossas decisões, nas nossas escolhas, nas nossas ações. Não nos interessa a tragédia moralizante, que castiga, que mostra o caminho, mas antes aquela que nos tira as certezas, que nos faz pensar, que nos deixa sem chão porque nos confronta com a coexistência dos opostos, que não nos deixa em terreno seguro, mas que nos traz a dúvida, o confronto com o medo, mas também o ímpeto de vida que nos leva a confrontar a escolha dos nossos caminhos. Como atores, músicos, criadores, o espaço do teatro é o nosso espaço de ação, a nossa relação com um momento presente, em que somos parte integrante de um tempo em que algo acontece. Encontrar Hécuba é encontrarmo-nos também a nós mesmos, no nosso tempo, acreditarmos no desafio de cada momento, e com isso transmitirmos a nossa credibilidade:

Não é monstruoso que um actor destes em ficção apenas, em paixão fingida, possa forçar a alma e todo o seu pensar, de modo a transformar o próprio rosto, chorar e mudar tanto de aspecto, em voz partida e cada gesto adequar, a seu bel-prazer às formas inventadas? E tudo para nada! Por Hécuba! Mas… Que tem ele com Hécuba ou Hécuba com ele, para que o actor tenha que chorar por ela? (SHAKESPEARE, Hamlet: II, 2)

Na proposta de processo de trabalho não partimos com o intuito de representar esta tragédia clássica, ou seguir a sua estrutura formal, mas antes tomá-la como ponto de partida para uma reflexão mais vasta sobre temas e questões que nos assaltam e interpelam – como a solidão, o sofrimento, a guerra, a pressão política e social, a vingança e a justiça, a humanidade/animalidade, o masculino/feminino, o ativo/passivo, as responsabilidades e as escolhas, o poder, a opressão, a capacidade e a possibilidade de ação, a liberdade – que se pretendem trabalhar a partir de improvisações, intertextualizações, propostas e sugestões de todos os colaboradores e intervenientes do projeto, que provindos de áreas diversas, poderão, no entanto, experimentar e assumir, se justificado, funções diversas em cena, ou fora dela.

FICHA TÉCNICA:
Direcção Artística Adriana Aboim
Assistência de encenação Cecília Vaz
Intérpretes e co-criadores João Aboim, João Almeida, João Estevens, Maria Leite, Olivia Funnuel, Sara Leite, Tiago Mansilha
Produção João Estevens
Co-produção Companhia de Teatro de Almada, GTN (Grupo de Teatro da Nova)
Apoios LARGO Residências, Aleluia Cerâmica, Museu de História Natural/Universidade de Lisboa

13 MAIO, 2012 | SALA EXPERIMENTAL | M/16

mostrar mais
Back to top button