Pirandello Encontrado no CCB

seis personagens em busca de autor

Joana Gorjão Henriques, em Paris in Público, 4 jul 2003

Vão cair do céu árvores verdadeiras. Vai aparecer uma família fantasmagórica, congelada para uma fotografia. E vai haver uma mulher pendurada num baloiço, ao fundo do palco, como uma imagem distante. Em vários momentos, as luzes vão apagar-se para vermos apenas, em grande plano, os rostos. Em vários momentos as cenas vão deslizar para diferentes sítios do palco, como uma câmara que determina o lugar da acção. E em vários momentos as cenas vão simplesmente aparecer e desaparecer.

É um filme? Não. É cinema em directo, com banda sonora em fundo. “Seis Personagens em Busca de Autor”, de Luigi Pirandello, encenado pelo luso-francês Emmanuel Demarcy-Mota, passa amanhã em sessão única no Centro Cultural de Belém, em Lisboa. Dura 1h53. O tempo está rigorosamente cronometrado: se houver diferenças, será de apenas um minuto, garante o encenador.

É um dos espectáculos fortes do Festival Internacional de Teatro de Almada, que hoje começa [ver texto nestas páginas]. Foi criado por um jovem de 31 anos que vive em França, é director de um teatro nacional (a Comédie de Reims) e tem uma companhia, Millefontaines, que resgata o nome de uma vila portuguesa, Vila Nova de Mil Fontes. É que Emmanuel, filho de uma portuguesa (a actriz Teresa Mota), tem uma enorme paixão pelo Alentejo, onde regressa sempre para carregar energias. Foi o que nos contou no Théâtre Bouffes du Nord, em Paris (teatro dirigido por Peter Brook), onde “Seis Personagens…” esteve em cena durante o mês de Junho, quando atingiu os 100 mil espectadores.

“O espectáculo não acaba quando está pronto. Quando se estreia, interessa-me ver o actor na relação com o espectador e na relação com os outros actores – como vão aparecer coisas que nunca tinha visto. Há coisas que recuso, como o riso em determinadas cenas: é preciso ir contra isso. Ao fim de um mês, via o espectador disposto a gostar do espectáculo antes de ele começar. Por isso, mudei o princípio. Depois de quatro meses, tirei certas músicas, porque os actores já estavam a fazer a cena de uma maneira programada. Isso permite ter uma relação teatral forte com os intérpretes. Há uma extrema vigilância de cada momento. Porque todos os dias tem que acontecer qualquer coisa. Todos os dias tem que haver uma experiência no momento, todos os dias tem que ser um directo.”

Emmanuel apropriou-se da sala do Bouffes du Nord, aproveitou as suas potencialidades, transformou a sua morfologia. Iluminou a cúpula, de onde fez descer adereços de cena. Fez cenário com as paredes avermelhadas a descascar, diminuiu a sala, espalhou os actores pelos andares da plateia. “Pouco a pouco crio a ideia de que o teatro desaparece, para que o mundo da ficção seja mais forte. Em Paris toda a gente conhece este teatro e é interessante torná-lo irreconhecível.”

Um teatro que é um espaço mais íntimo do que o Grande Auditório do CCB, onde a plateia estará mais distante (por isso parte dela permanecerá, talvez, mais na posição de observadora distante). Mas foi para uma sala com dimensão idêntica à do CCB que o encenador concebeu o espectáculo, há dois anos: o Théâtre de la Ville, em Paris (“Seis Personagens em Busca de Autor” andou em digressão por França, regressou ao la Ville).

“Vejo sempre o espaço para perceber como é que o integro no espectáculo, para que o espectáculo se passe naquele teatro. Até porque esta peça [cuja acção se passa num teatro] tem que ser integrada num espaço real. O espectáculo tem que partir de uma realidade concreta, física. Gosto que o actor tenha a capacidade de trabalho permanente sobre o espaço teatral onde está. Em Lisboa vou mudar coisas ao nível dos ritmos, dos movimentos: o palco é maior. No Bouffes du Nord evidenciou-se mais a intimidade. Os actores vão chegar a Lisboa com aquilo que se passou aqui, algo de mais íntimo, mas depois vão sentir a contradição de representar num palco maior e de o público estar mais longe. Vai interessar-me conservar a intimidade da relação, que permite ao espectador estar mais próximo, mas reencontrar distâncias maiores e conflitos que têm que ser mais exteriores. Não sei o que vai aparecer…”

personagens e autor. O que vai aparecer não é mero ilusionismo: Emmanuel é um criador e destruidor de imagens, mas não é alguém a manobrar actores-marionetas. “Seis Personagens…” é feito com corpos vivos, em colisão (Hugues Quester ou Alain Libolt são dois dos 12 combatentes).

Emmanuel transpõe para o palco o texto iconoclasta de Pirandello seguindo os movimentos e ritmos de uma peça que se constrói num vaivém entre mutabilidade e imutabilidade (daí a alternância, no palco, entre imagens fixas e imagens móveis), vida e ficção (ora mergulhamos num ambiente onírico, ora estamos numa sala de teatro com o recheio à vista), pessoas e personagens (por isso há dois grupos, com duas energias, figurinos, registos e universos diferentes).

Quando lhe falamos deste olhar cinematográfico, diz imediatamente que não lhe interessa “rivalizar com o cinema”, que lhe interessa mais a forma como o teatro conta histórias. Mas reconhece a influência. “O teatro não tem a eficácia imediata do cinema. Mas no cinema não há o sistema de composição em directo, como no teatro. Nos ensaios utilizo muito vocabulário cinematográfico: não falo em cenas, mas em sequências e em montagem entre duas sequências. Passo muito tempo a trabalhar as passagens entre sequências e é esse trabalho que me interessa mais, o momento da passagem de uma emoção a outra.”

É uma abordagem que parte do próprio texto, justifica, dizendo que Pirandello chegou a escrever um argumento para cinema com “Seis Personagens…”. “Pirandello trabalhou muito esta peça como um argumento: as imagens que oferece, as indicações que dá é como se fossem planos sequência. Isso interessa-me até para os actores ficarem conscientes do ritmo do espectáculo e não serem apanhados pela psicologia. A peça tem muita psicologia, mas não quis falar disso com os intérpretes, porque se torna impossível construir este espectáculo desta maneira.”

É que “Seis Personagens…” tem psicodrama (a história das Personagens, uma família desmembrada, assolada pelo incesto, que quer à viva força representar o seu drama, passar ao outro a bola da culpabilidade). Tem angústia existencial (a impossibilidade de os Actores encarnarem as Personagens, que passam vida a boicotar e a vampirizar o trabalho dos Actores porque recusam a mudança – no limite, a representação do outro como utopia). E há muita ironia, disparada como fogo-de-artifício (a começar pelo título: como diz Emmanuel não são as personagens que procuram o autor, é o autor que se quer libertar delas).

“Pirandello escreveu a história desta família num conto. A certa altura, ele diz que já não suporta as personagens e que elas têm que ir encontrar outro autor para resolver o seu problema. A partir daí inventa a peça para se libertar da história. Depois inventa esta família dentro de um teatro em busca de um autor, que é ele. Só que eles mentem, dizem que vão em busca de um autor, mas o que querem é representar. O pai quase diz que pode ser actor. Há um narcisismo nas personagens que é fantástico… como diz o Director, uma personagem não pode falar tanto dela. Uma personagem não explica – é.”

Há também um jogo de teatro dentro do teatro e do teatro contra o teatro. Obsessivo nas indicações, Pirandello cria labirintos armadilhados, ao ponto de o encenador correr o risco de ser engolido pelo texto. Emmanuel concorda: “Ao princípio, Pirandello explica muita coisa, mas a pouco e pouco vai dando cada vez menos indicações. E acho que ele faz de propósito: joga de maneira terrível com o encenador; há um combate entre o encenador e Pirandello. No trabalho com os actores senti muitas vezes que estávamos a construir uma cena e de repente a cena seguinte obrigava a desconstruí-la. Temos a sensação de que há um caminho, seguimo-lo e, depois, não há saída; não podemos avançar nem regressar, temos que encontrar um outro caminho. Aproveitei esse sistema de ruptura interior ao nível do ritmo, das emoções, da energia, das sensações.”

A chave é fazer destes dois grupos, os que representam o papel dos Actores e os que representam o papel das Personagens, dois bandos rivais; pô-los a combater em palco. E seguir um sistema pendular. Há momentos em que vamos desviar o olhar do Director (Alain Libolt: já pôde ser visto no cinema de Eric Rohmer ou Jacques Rivette) para assistir à disputa entre Belle Fille (Valérie Dashwood), uma espécie de Lolita que dá gargalhadas perversas, e o Pai incestuoso (Hugues Quester, que já habitou o cinema de Rohmer, Raoul Ruiz e João César Monteiro) que cambaleia com olhar demente e tem variações de voz abruptas.

Quester (que ganhou o Prémio da Crítica em França por esta interpretação) e Alain Libolt são dois actores que começaram a sua carreira com o encenador Patrice Chéreau, no início dos anos 70. Com ele fizeram “La Dispute”, de Marivaux (1973), o espectáculo emblemático do encenador francês, e com ele trabalharam alguns anos. Emmanuel voltou a juntá-los (foram muito amigos, tinham-se zangado) ao fim de quase 30 anos.

“Conhecia esse momento de teatro muito forte, quando Ariane Mnouchkine, Peter Brook, Chéreau começaram, e que puxou o teatro em Portugal, na Alemanha (com Peter Stein), na Itália (com Strehler). Quando os convidei, não lhes disse que o outro entrava. Mas sabia que tinham uma certa paixão de trabalhar um com outro. Foi muito interessante ao princípio, porque tinham um sistema de se observar, de ver como cada um tinha mudado. Têm uma relação de vida muito forte no palco.”

portugal. E por falar em Portugal: qual é a relação deste rapaz, que nasceu e vive em França, com o teatro português (ao qual pertence o tio, João Mota, director da Comuna)? “Estou inquieto, contente, mas inquieto. Porque são coisas muito secretas: a minha mãe foi actriz em Lisboa, o tio é o João Mota, é uma coisa estranha. Depois, não conheço o público português. Conhecia bem o teatro da geração dos meus pais (Comuna, Teatro Aberto, Cornucópia). A minha relação é muito afectiva, é a do olhar de uma criança sobre um mundo teatral que foi muito forte a seguir ao 25 de Abril: faziam teatro por necessidade. Acho que quem me deu o gozo do teatro foram os portugueses: ia para o teatro com os meus pais, ficava horas no teatro…”

Dirige actualmente um teatro nacional (tem um colectivo artístico, faz trabalho com vários públicos, convida jovens encenadores e autores para criarem produções que depois partem em digressão pelo país) e dirige a companhia que formou, em 1989, com um grupo de amigos de liceu (ainda hoje estão juntos).

Trabalha há longos anos com François Regnault, um filósofo, professor de Psicanálise e colaborador de Chéreau, que fez a tradução e análise dramatúrgica das peças que Emmanuel encenou (“Léonce et Léna”, de Georg Büchner, ou “Peine d’Amour Perdue”, de Shakespeare, espectáculo galardoado em 1999 com o Prémio Revelação do Syndicat National de La Critique). Curiosamente, a sua primeira encenação profissional, aos 23 anos, “A História do Soldado”, de Ramuz, esteve em cena na Fundação Gulbenkian, em Lisboa, a convite de José Sasportes.

“Fui várias vezes convidado para trabalhar em Portugal, mas não me sentia pronto. Também porque gosto de estar nos projectos quando isso faz sentido. Preciso de sentir o desejo de o fazer, de escolher as pessoas com quem trabalho. Adorava fazer coisas com Portugal: vamos ver. Interessa-me inventar um projecto entre lá e cá, inventar uma coisa mais forte. A dupla cultura interessa-me, até mesmo a nível teatral. Gosto da ideia de confronto, sou combativo. Preciso de confrontações no palco. E isso não é uma questão de amizades. Em Portugal o que me interessa é encontrar uma relação profissional, não um sítio de amizades. Porque é assim que trabalho em França.”

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