Os dias felizes de Almada

Pode ver-se em Almada (hoje, 16.00) a remontagem da encenação de Joaquim Benite d'Os Dias Felizes (1961) de Beckett.

Miguel-Pedro Quadrio in Diário de Notícias, 05 out 2003

Quando se estreou em 1993, o espectáculo teve excelente recepção do público e crítica, levando a que, em 1994, o Prémio da Crítica (melhor actriz) fosse atribuído a Teresa Gafeira. Não só se recupera uma leitura inteligentíssima e culta da peça (e interpretação memorável de Winnie), como, sujeitando-a a um novo esforço de clarificação, se reconfirma o singular posicionamento que, face a produções recentes, ela ocupa.

Pela estilização de formas e pela simplificação cromática, a depuração afecta, desde logo, a sobrecarga significativa do espaço cénico. Reassumindo a simplicidade e a simetria que Beckett exigia para o cenário, Benite (seu autor e dos figurinos) funde o campo de erva queimada e o montículo de areia, onde Winnie está enterrada até à cintura, numa bem definida elevação de superfície escura e rugosa, quase tumular, que, preenchendo horizontalmente o proscénio, se opõe a um ciclorama em fundo, no qual a variação das cores projectadas no 1.º acto assinala a passagem do tempo e a fixação dum tom quente no 2.º acto reflecte, segundo a «temperatura da cor», a intensidade da luz que castiga a personagem (já só de cabeça de fora). Também adereços e figurinos se uniformizam num branco que potencializa a «luz crua» prevista pelo autor, aqui desenhada em incidência frontal directa. A redução e contraste a que se submete a cena indiciam uma vontade eficaz de reassumir o que há de insólito e inexplicável na conciliação entre o (quase) monólogo naturalista de Winnie e o espaço / tempo envolventes (fala sem cessar, semi-enterrada num lugar inóspito e indefinido, sob um sol escaldante, num dia regrado a toques de campainha e dirigindo-se a um marido lacónico, que, atrás dela, dorme num buraco escavado na terra). Aliás, é este estranhamento que secundará o genial trabalho da actriz (bem acompanhada pelo Willie de Alfredo Sobreira), permitindo-lhe uma inusitada variação de registo, que segue rigorosamente a intervenção didascálica do autor. Pela exacta movimentação do corpo e atenta entoação dum enunciado sujeito a constantes modalizações, Gafeira amplifica infinitamente as ambiguidades desta «comédia à moda antiga» (propósito arrojado e espinhoso face à redundante teatralização a que normalmente se vê submetida), expondo, sem quaisquer limitações orientadoras da interpretação, a irrisão dum mundo que, tendo sido olhado por Beckett, é ainda o nosso.

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