O sexo, a maldade, a vingança, o amor e inveja deste Tennessee Williams

De sexta a domingo, a encenação de Carlos Avilez para Bruscamente no Verão Passado abre o Festival de Almada. Uma leitura de Tennessee Williams muito sexualizada e encantada pela estranheza do texto.

Gonçalo Frota in ípsilon 03 Julho 2020 | notícia online

O branco está por todo o lado na peça de Tennessee Williams. Quando Catharine descreve o dia fatídico da morte de Sebastian que ensombra em permanência Bruscamente no Verão Passado, fala-nos das “tardes abrasadoras e brancas de Cabeza de Lobo”, no México, “de um branco escaldante”. Sebastian, lembra Catharine, “estava branco como o dia” e vestia “um fato de seda branca impecável, com uma gravata de seda branca, um panamá branco e sapatos brancos — de pele de lagarto branco”. E limpava repetidamente “o suor do seu resto e pescoço com um lenço de seda branca”, ao mesmo tempo que engolia “comprimidos pequenos e brancos”. No auge do seu relato, parecia que “um enorme osso branco de um animal gigante tinha incendiado o céu”. Tudo branco, como se fôssemos ofuscados pela violência dos acontecimentos, como se cada palavra fosse fabricada durante uma insolação febril, como se o seu discurso estivesse contaminado pelo branco frio e cirúrgico do hospital psiquiátrico onde Catharine foi fechada depois da morte de Sebastian.

Assim se explica, sem surpresa, a opção de Carlos Avilez, neste seu regresso a Tennessee Williams, pela alvura de todo palco, querendo sinalizar a sua interpretação de que a loucura — ou pelo menos a desabrida perturbação — reina entre todas as personagens que desfilam pela mansão de Violeta Venable, mãe de Sebastian, no Garden District de New Orleans. O encenador do Teatro Experimental de Cascais — onde a peça se apresentará entre 10 de Julho e 2 de Agosto, depois de abrir no Teatro Municipal Joaquim Benite, de sexta a domingo, o 37º Festival de Almada — prefere não carregar na exuberância de um jardim que se parece com uma floresta tropical, de acordo com as palavras do autor inscritas nas indicações cénicas da peça. Este branco total, a que logo se juntará o Dr. Cukrowicz, trajado da mesma cor, parece sugerir também a imobilidade absoluta destas personagens. Desde que Sebastian morreu, “bruscamente no Verão passado”, as vidas de todos eles estancaram, ficaram presas àquela tragédia e ao relato macabro entregue por Catharine, única testemunha do desfecho sinistro do poeta.

Também o médico, o Dr. Cukrowicz (Bernardo Souto), chamado por Violet Venable (Manuela Couto) para escutar a versão de Catharine (Bárbara Branco) e a submeter a uma lobotomia para aquela história seja, por fim, apagada do mundo, termina a peça tão perturbado como os restantes. No fundo, tudo em Bruscamente no Verão Passado se dispõe em torno de uma aberta disputa entre Violet e Catharine. Uma disputa pela versão oficial da vida e da morte de Sebastian, mas também pelos seus favores afectivos. Violet, a mãe, pinta-o como um homem casto, um poeta cuja existência se confundia com a da criação, deleitando-se com a recordação de que em Madrid ou em Biarritz eram tomados por um casal. Catharine, a prima, lembra-o como um homem de enorme apetite sexual, “esfaimado por loiros”, que “falava das pessoas como se elas fossem pratos de um menu”, mas sem fome pela vida, entregue a comprimidos e a uma desenxabida dieta de saladas.

Quando Violet chama o médico para testemunhar a história que Catharine foi intimada a vir contar, fá-lo com o intuito de apagar a memória da sobrinha e impor a sua como única verdade possível sobre a vida de Sebastian. Como se ao livrar-se daquele relato se livrasse também da possibilidade de ter acontecido e assim pudesse voltar a controlar a vida do filho. “Vou dedicar tudo o que resta da minha vida, doutor, a defender a reputação de um falecido poeta”, diz ao Dr. Cukrowicz. E avisa: “Eu não vou ter uma crise! Ela é que vai entrar em colapso! Quero dizer, as mentiras dela vão colapsar — não a minha verdade — não a verdade.” E para se certificar que domina o rumo dos acontecimentos, não apenas lança o seu charme sobre o médico, mas acena-lhe com a promessa de fundos suficientes para que o precário financiamento da sua investigação científica deixe de ser um problema.

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