O que devemos a Almada

Atente-se bem: em 38 anos de Festival de Almada, houve Strehler, Ronconi, Brook, Chéreau, Bondy, Wilson, isto é, praticamente todos os máximos mestres da encenação teatral. É obra!

 in Público, 23 Julho 2021 | notícia online

De há muito que nas nossas agendas artísticas e culturais, Julho é o mês do Festival de Almada, cuja 38.ª edição termina neste domingo. 38 anos! Já? O tempo passa e parecem indeléveis as memórias dos espectáculos que lá vimos, dos grandes espectáculos de Almada — há muito mais na cidade e no concelho, aliás de intensas actividades culturais, mas para os amadores de teatro, e apesar de uma companhia residente, a Companhia de Teatro de Almada, aliás promotora do festival, Almada é antes do mais o seu Festival. E com que historial!

Atente-se a esta lista: Arlequim Servidor de Dois Amos, de Goldoni, encenado por Giorgio Strehler no Piccolo Teatro de Milano (provavelmente o mais histórico espectáculo teatral do século XX), ainda com o imenso Ferruccio Soleri no papel titular; mais um texto de Goldoni também com o Piccolo, I Due Gemelli Veneziani por outro grande mestre, Luca Ronconi; L’Homme Qui…, baseado no conhecido texto do neurologista Oliver Sacks O Homem Que Confundiu A Sua Mulher Com Um Chapéu, um dos mais despojados e belos trabalhos de Peter Brook; Peer Gynt, de Ibsen por Peter Zadek (uma completa surpresa para mim, que até não tinha gostado de nenhum trabalho dele e achei este admirável); um comoventíssimo Krapp’s Last Tape com um surpreendente Klaus Maria  Brandauer por Peter Stein, que apresentou também um hilariante e brilhante Le Prix Martin, de Labiche (só não gostei — e das muitas encenações de Stein que vi foi a única que me decepcionou — de O Regresso a Casa, de Harold Pinter, de uma lentidão que amolecia a acidez do texto); outro Beckett, este uma outra encenação de Strehler, Dias Felizes com Giulia Lazzarini, viúva do encenador, Eu Sou o Vento, de Jon Fosse por Patrice Chéreau; As Criadas de Jean Genet, com uma genialíssima Edith Clever, e À Espera de Godot, ainda um outro Beckett, ambos por Luc Bondy, uma fabulosa e tão bergmaniana Menina Júlia, de Strindberg por Katie Mitchell; Uma Vitalidade Desesperada, de Pasolini com e por Laura Betti; As Irmãs Macaluso, de Emma Dante (que ela posteriormente retomou em filme) com o seu grupo Sud Costa de Palermo, ou Mary Said What She Said de Bob Wilson, demasiado em piloto automático, com Wilson a fazer “à la Wilson”, é certo, mas com uma imensa actriz, Isabelle Huppert.

Atente-se bem: em 38 anos de Festival de Almada, houve Strehler, Ronconi, Brook, Chéreau, Bondy, Wilson, isto é, praticamente todos os máximos mestres da encenação teatral. É obra!

O teatro é a arte da polis mas é também o grande teatro do mundo/o grande mundo do teatro. E o Festival de Almada trouxe-nos mundo, isto é, estética e eticamente, conhecimento, o cosmopolitismo que é tão urgente e, enquanto tal, uma acrescida noção de cidadania, gesto artístico e também político, pois.

Ao contrário do que extemporaneamente faz supor algum discurso “pós-dramático” nem todo o teatro em Portugal era de um isolamento provinciano – a Comuna, via João Mota, seguia ensinamentos e práticas de Peter Brook, a partir de certa altura a Cornucópia, via Jean-Pierre Vincent e sobretudo Jean Jourdheuil em França, acolheu a influência da Schaubühne de Peter Stein e Klaus Michael Grüber. Mas teatro internacional, conhecimento acrescido de práticas e perspectivas, era coisa rara, inolvidável sendo que a Gulbenkian trouxe um duplo espectáculo de Peter Brook, com o maravilhoso La conference des oiseaux e Les Iks. Mas manifestações de vocação internacional quando o Festival de Almada foi criado, apenas havia no Porto o FITEI que, como se indicia no acrónimo é especificamente de “expressão ibérica”. Foi Almada que desbravou os horizontes.

Mas atenção: se o cosmopolitismo é vocação do Festival, ele é também a grande plataforma do teatro português dos grandes grupos veteranos aos talentos emergentes – em 2015 o Prémio do Público foi mesmo atribuído a Um Museu Vivo de Memórias Pequenas e Esquecidas, do Teatro do Vestido de Joana Craveiro (que, por coincidência se apresenta nesta edição nestes últimos dias Viagem a Portugal), Joana Craveiro sendo das mais salientes revelações, e também já confirmações dos últimos 10 anos.

Há uma particularidade nos festivais de teatro: conhecendo os maiores, Avignon e Edimburgo, e tendo uma considerável frequência dos de cinema, música e ópera, não se me oferecem dúvidas que é nos primeiros que festival é uma expressão da sua etimologia em festa.

Almada é a nossa grande festa do teatro, que depois da morte de Joaquim Benite passou a ser dirigida com resiliência e competência por Rodrigo Francisco. O que devemos a Almada é incomensurável. Obrigado Companhia de Teatro de Almada, obrigado Joaquim!

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