O Olhar e a Audição

Beckett e Maeterlinck nos limites do humano

Nuno Nascimento in Jornal de Almada, 11 jul 2003

Entre os muitos espectáculos que marcaram esta primeira semana do Festival de Almada, dois se destacam por diversas características comuns, que não apenas o facto de ambos os seus autores terem ganho o Prémio Nobel da Literatura, o que, sendo estes autores essencialmente dramaturgos, é, por si só, bastante raro. “A Última Bobina”, de Samuel Beckett, e “Les Aveugles”, de Maurice Maeterlinck, sendo ambos espectáculos fortemente intimistas e de curta duração, foram apresentados em pequenos auditórios (na sala Virgílio Martinho do Teatro Municipal e na Incrível Almadense, respectivamente) ao longo de várias sessões. Ambas as peças subvertiam, quando foram escritas, todas as regras de escrita teatral e se tornaram textos axiais do teatro moderno. Ambas projectam interrogações de cariz ontológico, assentes na análise do ser no mundo apercebido através dos sentidos. No primeiro caso através da audição, no segundo através do olhar. Ambas questionam o papel do actor no teatro. São porém, na sua concepção, dois espectáculos muito diversos.

Em a “A Última Bobina”, um texto de 1958, a quase inexistência de acção e de intriga, bem como o facto de boa parte do texto ser ouvida num gravador, questionam fortemente todas as convenções do teatro ainda hoje prevalecentes. Porém, deste estranho duplo monólogo de um velho e de um gravador, no mais extremo do vazio e da solidão, desprende-se uma terrivelmente crua poesia existencial, além de uma extraordinária beleza formal.

Ainda mais radical na desumanização do indivíduo em face do seu irremediável isolamento é a peça de Maeterlinck, ainda que muito anterior, de 1890. 0 humor e o absurdo, a colocação de personagens nas malhas de situações inverosímeis, bem como a ausência de acção, são aqui verdadeiramente percursoras do teatro de Beckett. Porém, se já Maeterlinck propunha para o seu teatro, cujos personagens estão no limite do humano, ítkpa poética fundada na ausência – 66 actor, um “teatro de marionetas” ou um “teatro estático”, esta encenação de Denis Marleau leva essa proposta ao seu culminar lógico: a supressão da própria presença física do actor. Os doze cegos de Maeterlinck são aqui, apenas, rostos flutuando na escuridão absoluta. Não actores de carne e osso, mas projecções de vídeo sobre máscaras que reproduzem diferentes rictus faciais dos dois únicos actores, Céline Bonnier e Paul Savoie, marionetas imóveis e contudo animadas, cuja estranha presença nos toca e cuja musicalidade minimalista e discreta nos cativa. A impressão de realidade é, contudo, absolutamente convincente e grande parte do público só se apercebeu de que não estava perante actores reais, mas perante uma fantasmagoria tecnológica, no final do espectáculo. E nem por isso a peça é menos comovente. Até porque esses cegos perdidos e isolados somos nós próprios, bem o sabemos. A cegueira é uma metáfora da nossa condição humana com o que ela tem de trágico mas também de divertido.

mostrar mais
Back to top button