O Nascimento do Teatro

Demarcy-Mota deslumbrou o Festival de Almada com clássico de Pirandello

Nuno Nascimento in Jornal de Almada, 11 jul 2003

Na passada edição fizéramos já eco do estrondoso sucesso que o espectáculo do encenador luso-francês Emmanuel Demarcy-Mota “Six Personnages en Quête d’Auteur” alcançou em França, Nada, porém, poderia preparar o público para o deslumbramento deste espectáculo inolvidável que, com grande sentido de oportunidade, o Festival de Almada nos ofereceu, no Centro Cultural de Belém, no passado Sábado; dia 5. Aqueles que, porventura, se interrogavam sobre o que de novo nos poderia trazer mais uma encenação deste grande clássico do teatro moderno que, afinal, já foi recriado por quase todos os grandes encenadores das últimas décadas (para além da curiosidade, afinal marginal, da ascendência do seu encenador) terão, sem dúvida, ficado rendidos a este espectáculo magnífico, profundamente original e pessoal, verdadeiramente magistral e, no que respeita à leitura do texto, extremamente inovador, logrando iluminá-lo de forma nova e inesperada.

O autor desta peça, o escritor italiano Luigi Pirandello (18671936), que recebeu o Prémio Nobel da Literatura em 1934, é, sem dúvida, um dos dramaturgos mais importantes e de maior sucesso do sec. XX, e um dos maiores renovadores e precursores do teatro moderno. O primordial motivo dramático das suas peças é o desdobramento do eu (que, aliás, constitui temática dominante de muitos modernistas seus contemporâneos, como Fernando Pessoa). Os seus personagens exprimem uma interrogação de cariz ontológico, uma incerteza diante da própria realidade e da própria identidade. Nesta incerteza em que tudo é duvidoso, excepto o imaginário, tudo é suspeito, excepto o jogo, não será o próprio mundo um cenário de teatro? Em “Seis Personagens em Busca de Autor”, Pirandello conduz esta interrogação a uma complexidade paroxística. Esta comédia faz parte da sua trilogia do “teatro dentro do teatro”, que constitui uma reflexão sobre as relações entre a ficção e a realidade, sobre a distância entre a realidade dos personagens e os actores que os interpretam, sobre a própria natureza do teatro.

É bem conhecida esta fábula das seis personagens com ar de família sem abrigo que irrompem inesperadamente no palco de um teatro, enquanto se ensaia uma qualquer peça e, ao estupefacto encenador, explicam que saíram todos da imaginação de um autor que lhes deu vida sem contudo ter conseguido desenvolver a sua história. Nessa esperança, eles confessam-se ao encenador, não parando de se contradizer, cada um mostrando-se exclusivamente preocupado, de facto, em elucidar o seu próprio caso, em justificar-se…

A dicotomia ficção/realidade é sublinhada pela presença de um cenário noutro cenário, o dos actores no seu trabalho. Mas a distinção entre cenas faccionais e reais é mais complexa do que parece. Enquanto os actores encarnam os personagens de ficção em ensaios, eles são também os espectadores do “drama” dos seis personagens errantes. E a complexidade da peça não termina aí, pois os nossos seis infelizes, uma vez distribuidos os papéis, fazem do seu drama a verdadeira realidade da peça de Pirandello. Um drama, aliás, simultaneamente miserável e trágico, de violência, adultério, incesto e morte. Porém, somente esta trágica história de família contém uma sequência de acontecimentos apta a manter em suspense o espectador, só ela diz as sensações dos personagens.

Finalmente, os personagens convertem-se em actores da sua própria história. Como um ilusionista, Pirandello recreia-se a envolver o espectador num complexo jogo de espelhos. Mais que teatro dentro do teatro, a peça evidencia a impossibilidade de conhecer a verdade de um drama, pois trata-se sempre do drama de um outro.

O primeiro conseguimento desta encenação terá sido o de evitar recursos fáceis de comédia nessa historieta melodramática que subjaz à peça, dando-lhe uma inteireza e verdade que preservam todo o seu patetismo trágico que, afinal, resume a vida humana na sua mesquinhez e banalidade. Os efeitos de comédia estão mais no lado da relação entre ficção e realidade. E aqui Demarcy-Mota entendeu bem que o personagem-chave desta relação é o Encenador – admiravelmente interpretado por Alain Libolt – dividido entre a vontade de seguir estes personagens insólitos até ao fim e a vontade de marcar o seu poder e ditar as regras do jogo.

No elenco de 16 actores. Demarcy-Mota reuniu actores famosos da cena francesa actual – com destaque para o fabuloso Hugues Quester, o Pai, numa poderosa encarnação do remorso, carnal e trágica – e actores menos conhecidos, com quem havia trabalha do continuadamente nos seus espectáculos anteriores. Contudo, o elenco é absolutamente coeso e a movimentação, quase sempre com todos os factores em cena, não se restringindo ao palco mas invadindo todo o auditório, é precisa e dinâmica, magistral no instinto do espaço e no domínio da cena. A direcção de actores tão heterogéneos é tanto mais feliz quanto, como bem compreendeu o encenador, o encanto desta peça só se revela se os actores aceitarem a regra do jogo que lhe é subjacente, isto é: não tanto o investir-se totalmente num determinado papel, mas aceitar participar numa ilusão colectiva em que o Teatro finge imitar o Teatro.

Demarcy-Mota consegue assim, de forma exemplar, um resultado que é frequentemente ignorado, mas que é essencial para a eficácia desta peça: confundir habilmente os planos da realidade e da ilusão. E, no entanto, a peça toma-se clara, simples, ordenada, como raras vezes se terá conseguido em tal complexidade. Não por acaso, Demarcy-Mota declarou numa entrevista que a sua primordial preocupação é sempre a de contar uma história com o máximo de clareza e eficácia possíveis. Apesar da grandiosidade dos meios empregues, o espectáculo nada tem de supérfluo ou meramente estetizante. Tudo está ao serviço da complexidade da peça. Uma grande cenografia de Yves Collet, que também realizou o subtil desenho de luzes que amplifica ainda mais a presença dos actores, panos, sombras, jogos de transparências, ml e um artifícios de cena, confluem todos para aliar poesia, riso e horror. Tudo contribui para tomar a peça clara sem contudo lhe dissipar o mistério, como, aliás, pretendia Pirandello. Um clima pleno de poesia e emoção, de furor e inquietação, a pouco e pouco vai envolvendo o público, que assiste, perante os seus olhos extasiados, ao próprio nascimento do Teatro.

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