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O Fascínio dos Stan no Festival de Almada
Quando se fala da companhia flamenga Tg Stan, é habitual dizer-se que recusam a figura do encenador, não fazem ensaios, não incarnam personagens.
Joana Gorjão Henriques in Público, 11 jul 2003
Começa-se por aqui porque os Stan revelam tudo isso em palco. Falar dos espectáculos dos Stan – para muitos criadores portugueses, um modelo e (arriscamos) um culto – é falar de não artifício. Quem não os conhece pode vê-los hoje e amanhã no Festival de Teatro Almada (Fórum Municipal Romeu Correia, Almada).
Regressam a Portugal, onde estiverem várias vezes, com “Tout Est Calme”, do austríaco Thomas Bernhard, um dos autores de eleição dos Stan, sublinha Tiago Rodrigues, actor português que colabora com o grupo desde 1997 e que vai ter uma participação nesta crítica irónica às celebridades literárias, com um aspirante a Prémio Nobel em pano de fundo. “Sendo uma crítica de costumes, não é ‘engagé’ ideologicamente e tem muito a ver com o humor dos Stan, um humor do Norte, azedo”.
Voltam a interpretar Bernhard depois de Tchekov, Ibsen, Gorki, Büchner, Wilde, Gombrovicz, Shaw, Cocteau e Anouilh… Mas esqueçam os nomes, dizem os Stan (que quer dizer “Stop Thinking About Names”), cujo núcleo fundador de 1989 integra Frank Vercruyssen e Jolente de Keersmaeker.
Para Tiago Rodrigues, que destaca o “rigor absoluto” do colectivo no trabalho do texto, esta “é uma peça muito à Stan”, claramente de actores. Mas é “surpreendente: tem um lado de farsa levado a um extremo, que não é tão habitual”, e a ligação com o público não é imediata, “constrói-se mais tarde”.
Aqui e agora
Porquê o entusiasmo que os Stan provocam na Europa? O actor aponta o humor que abre uma “porta para o público”. Mas “um humor que não é fácil” – muitas vezes é um comentário do actor, a forma como se interpreta. É autocrítico, não é só ironia e sátira mas uma forma de contacto com a realidade.”
O entusiasmo pode surgir, ainda, pelos Stan “aparecerem como símbolo de uma possibilidade de teatro”, ao abolirem o encenador e não ensaiarem no palco. “O trabalho é feito à mesa: dois dias antes faz-se um desenho de cena, mas não há apuramento. A estreia é a explosão de semanas de trabalho.”
Garantias para que o espectáculo não entre em roda-livre? Uma linguagem comum e confiança, “a base para um jogo em que há um desafio entre actores: houve uma conversa e ela é levada para a cena, o que permite que ela evolua. A filosofia dos Stan é o ‘aqui e agora’, com o risco da imperfeição mas com a magia de que tudo pode acontecer. Como actor interfiro no espectáculo e não estou apenas a cumpri-lo. Isso contribui para uma energia e vitalidade para quem toma opções em palco.”
E para quem está na plateia. No ano passado, quando os viu, o realizador João Canijo decidiu voltar ao teatro (para o ano regressará a E. A. Whitehead, de quem encenou nos anos 80 “Jogos de Praia”). Já em “Sete Anos” (2002) se aproximara do processo dos Stan, sem o perceber. “Enquanto discutem mais do que ensaiam, eu discutia e ensaiava. No próximo espectáculo estou a pensar só discutir o texto. Isso faz com que as coisas tenham uma frescura e uma força que não é possível quando se ensaia, porque, por muito que se queira, o texto passa a ser texto outra vez.”
Regina Guimarães, realizadora, recusa a palavra culto – “não me parece que se posicionem assim” -, mas reconhece que no final dos espectáculos dos Stan “a exaltação” leva as pessoas a sentirem necessidade de “falarem umas com as outras” sobre o que viram. “A exaltação provém de uma forma irreverente que têm de agarrar nos textos, às vezes até com ingenuidade, no sentido em que qualquer texto encerra um mistério e que apesar dos rios de tinta que se escrevem, nunca se desvenda esse mistério.”
A realizadora – que viu “Point Blank” (baseado em Tchekov), “Quarteto” (Heiner Müller) e “Antígonas” (a partir de Cocteau e Anouilh) – considera-os “a única companhia verdadeiramente brechtiana a trabalhar”. “Conseguem realizar o programa de teatro épico, com os efeitos de humor e distanciação. Não sei se isso faz parte, conscientemente, do projecto artístico, mas é extraordinário. Abre, ao espectador, perspectivas diferentes sobre o fazer teatral e sobre as coisas em geral.”
Nuno Cardoso, encenador e director do ANCA, fala de “inteligência” no trabalho de actor na análise e interpretação do texto. “Obriga a estar presente e a pensar ao mesmo tempo que os vemos representar.”
Sobre o trabalho de actor desenvolvido pelos Stan, conclui João Canijo: “A partir do momento em que o texto se torna parte integrante do actor, em que ele o entendeu completamente, passa a ser uma coisa quase carnal do actor. É a capacidade de exprimir o pensamento emocionalmente. Se o texto se transforma em pensamento do actor, ele vai transmitir a emoção desse pensamento. É a transmissão genuína do pensamento expressa por palavras.”