O estado das coisas

A partir de testemunhos de antigos combatentes da guerra colonial, Rodrigo Francisco interroga uma parte da história recente particularmente sensível

João Carneiro in Expresso, 09 Julho 2021

No início, um homem acaba de se divorciar, e faz uma pergunta: “O que é que um gajo há de ir fazer a seguir a divorciar-se?” É tão simples que por momentos nem sabemos como reagir, ainda menos responder. Fazer o quê? Naquele momento? Nos dias seguintes? Daí para a frente? O homem vai falando, que é o que se faz muitas vezes quando não se sabe o que se está a passar, muito menos o que se há de fazer. Começa a falar naquilo que é desmontar 47 anos de casamento, mais de metade de uma vida toda, e bem longa, assim, depois de se assinar um papel. Sem festas, sem convidados, sem o filho que foi acompanhar a mãe. O homem resolve ir almoçar ao sítio do costume, e de repente está a falar da guerra.

É a falar que as coisas vão surgindo, de maneira descontínua, fragmentada, como acontece com o trabalho da memória a que a linguagem vai dando uma forma possível. “Esquisito” — pensa ele, ou antes, diz ele, porque nós estamos ali, no teatro, para ver e ouvir — “Às vezes não sei bem quem fala dentro da minha cabeça, quando sou eu próprio que falo.” Por que razão sente aquele homem necessidade de falar da guerra, uma coisa que aconteceu há cinquenta anos? Por que razão tem ele necessidade de falar da morte, porque é disso que se trata, guerra e morte estão aqui ligados de maneira muito, muito complicada, o que é o mesmo que dizer muito dolorosa? Nada disto são caprichos, nem conversa de chacha. O homem vai fazendo algumas perguntas, em pouco tempo está a perguntar — a quem? — se esse alguém sabe como é que se transforma a vida em morte. Já não é só o homem que fala, são outros soldados, outros homens que estiveram na guerra, e que vão falando disso: da morte, de matar, de morrer, de continuar a viver. Como? “Como” é uma palavra-chave, uma delas, nesta peça, atravessada também pela noção de desadequação, de desarranjo, de avaria; como quando alguém diz que há homens que vêm “escangalhados” da guerra. Avariados. E há mais pessoas que falam, não são só os ex-combatentes. A guerra destas pessoas é a guerra colonial, a guerra de um Portugal enorme — enorme? —, que afinal não era assim tal e qual se pintava.

A guerra era uma guerra de brancos contra pretos, mas quando se começa a investigar, as coisas não são tão lineares. Quase tudo é verdade, mas quase tudo é várias verdades ao mesmo tempo. E se a guerra não era exatamente, ou somente, uma guerra entre pretos e brancos, daí não podemos inferir que o racismo seja uma invenção. Do facto de muitos homens terem ficado com as cabeças e as vidas mais ou menos “escangalhadas” não se pode concluir que afinal todos foram vítimas, e só vítimas. Não se pode passar ao lado daquilo que é matar, e que é uma coisa diferente para cada um dos soldados. Não se pode ignorar a vertigem de destruição que tomava — e toma — conta de quem tem uma arma na mão e, como se diz na peça, sente que só com o olhar pode aniquilar a pessoa que está à frente. Não se pode ignorar que matar é uma aprendizagem e um ensino, feitos conscientemente e a frio. Mas não se pode ignorar que não sabemos, geralmente, quem decide da guerra, e que os soldados são, em última análise, a peça menos responsável e mais instrumental das políticas que desencadeiam as guerras. Não se pode ignorar que, relativamente à guerra colonial, a muitas das tropas que nela participarem, as perguntas certas não terão sido ainda feitas. Não sabemos ainda como é que muitos dos homens que combateram nessa guerra lidam com o seu passado. Adotar a estratégia de acusador/acusado não resulta; reagir histericamente quando a discussão azeda ou fica demasiado desconfortável, também não. Por um acaso, Rodrigo Francisco deparouse com algumas destas pessoas, que tinham estado na guerra, antigos combatentes. Ficou surpreendido com o que começou a ouvir e quis saber mais. Juntou os testemunhos. Escreveu a peça. “Um Gajo Nunca Mais É a Mesma Coisa” é uma frase ambígua; mas é um estado de coisas possível e desconfortável. Encenação de Rodrigo Francisco, interpretação de Afonso de Portugal, João Farraia, Luís Vicente, Pedro Walter e Lara Mesquita.

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