O espectáculo tem de continuar…

Metáfora sobre a precariedade dos protagonistas do mundo do espectáculo, que não esconde a desilusão, o desespero e o desencanto, mas é igualmente uma metáfora sobre o destino dos que acreditam

Rui Monteiro in Público 27 Abril 2023 | notícia online

Quando se pensa em “music-hall”, quando se pensa no espectáculo de variedades popular que era antes do formato “concerto” tomar conta de tudo, pensa-se decerto em luz e cor e coreografia e fantasia e cantoras e cantores elevando ou sussurrando a sua voz apoiados por uma orquestra e rodeados por um corpo de baile. Enfim, pensa-se em luxo, extravagância, eventualmente alguma bizarria, em entretenimento por um par de horas mantendo o mais possível de fora a realidade. Pois. É mesmo isso que Music-Hall não é.

Ela, a Rapariga, pode entrar em cena com um sorriso, revelando-se lentamente através daquela cortina que parece um mosquiteiro, os braços abrindo-se numa espécie de saudação aos aplausos do público, um sinal de que ela e o seu par de parceiros estão ali para eles e pela sua admiração e gratidão pela artista. Daqui para a frente e até a cortina do palco fechar, espera-se, será uma festa. Ora, a peça escrita por Jean-Luc Lagarce (1957-1995), que Rogério de Carvalho encena, está longe de qualquer foguetório próprio das variedades. Afinal, não é o grande palco que a Rapariga (Teresa Gafeira) e os seus rapazes (João Farraia e Pedro Walter) pisam, nem uma grande sala que os recebe quando representam sobre o cenário de José Manuel Castanheira. Estamos, talvez não para lá do sol-posto, mas algures em algum teatro, se teatro for, modesto, com poucas condições, provavelmente já a caminho da decrepitude.

Chegámos ao ponto, pois a decadência de uma artista que na realidade nunca conheceu o verdadeiro estrelato, as razões, as condições, as circunstâncias que ali a levaram são a razão de ser desta peça (que já foi apresentada, curiosamente no Festival de Almada, em 2005, com uma efusiva encenação de François Berreur para os Artistas Unidos). O que está por detrás do seu sorriso e dos seus braços abertos à espera dos aplausos tantas vezes pífios é um fingimento. E quem está sobre as tábuas é uma actriz que olha para o passado, pois o passado parece sempre melhor, mesmo quando não foi grande coisa, comparando-o com o seu presente, sem realmente vislumbrar um futuro.

A Rapariga conta uma história, a sua, uma que se confunde com a de tantos artistas que um dia se confrontam com, digamos, a mediania do seu trabalho, com essa espécie de limbo artístico que é passar a vida em companhias de pouco monta e em espectáculos mais ou menos irrelevantes. Por muito que seja o amor e a dedicação, por muito que se recordem de que o espectáculo tem de continuar, por muito que se esqueçam dos camarins e dos palcos em salas sem condições ou dos alojamentos medíocres para quem passa a vida na estrada. Às tantas, a Rapariga dirá: “Estou perdida”. E está.

O texto de Lagarce, que morreu cedo e tem a sua obra mais reconhecida agora do que em vida, é, sem dúvida, uma elaborada tecedura de palavras organizadas em frases quase sempre ambíguas mesmo, ou principalmente quando parecem certezas. Frases carregadas de sentimento, de saudade e desilusão, que revelam a lentidão da decadência e que a equilibrada interpretação de Teresa Gafeira narra como uma sobrevivente agarrada a esperança vaga e vã de quem sabe viver em mundo que, quando não rejeita, ignora o talento que acredita ter.

É, evidentemente, uma metáfora sobre a precariedade dos protagonistas do mundo do espectáculo, que não esconde a desilusão, o desespero e o desencanto, mas é igualmente uma metáfora sobre o destino dos que acreditam e, em contrapartida à sua fé, só encontram desencanto numa sociedade que valoriza o individualismo tanto como o dinheiro, sem deixar grande espaço ao sonho e ao talento. Rogério de Carvalho, na sua encenação, mostra uma evidente compreensão e, diria, atracção por um texto que diz tanto como o que deixa à imaginação, explorando as características do teatro dentro do teatro que é a génese desta peça e as qualidades de Teresa Gafeira, João Farraia e Pedro Walter. Contudo, algures no decorrer da representação, a sua visão vai esmorecendo e a obra é como que tomado pela previsibilidade, fechando-se em si e perdendo o encanto que emana do original.

Music-Hall

De Jean-Luc Lagarce
Encenação de Rogério de Carvalho
Por Companhia de Teatro de Almada
Teatro Municipal Joaquim Benite (Sala Experimental), Almada
Até 14 de Maio

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