O deve e o haver

No primeiro festival da sua total responsabilidade, Rodrigo Francisco privilegia a ideia de transmissão de conhecimentos.

Na peça “Victor ou les enfants au pouvoir”, de Roger Vitrac (1899-1952), uma criança de 9 anos toma decisões inesperadas e cruciais. Decide não crescer, mas desequilibra o equilíbrio familiar e social em que vive – e ao qual, curiosamente, não somos totalmente estranhos em 2013. O espectáculo, com encenação de Emmanuel Demarcy-Mota, é um dos muitos, quase trinta, que integram o Festival de Almada deste ano. É também, um dos espectáculos em que as pessoas novas fazem parte daquilo que é apresentado nesta mostra de teatro.

Da Irlanda chega “Heroin”, resultado de um contacto com os meios da toxicodependência, num dos países em que a circulação de heroína é das mais alarmantes. De pessoas mais ou menos novas tratam, também, os espectáculos da Eslovénia e da Croácia, “Maldito seja o Traidor da sua Pátria”, de Oliver Frljic, e “Yellow Line”, de Juli Zeh e Charlotte Roos, encenado por Ivica Buljan. De ou com muita gente nova são ainda os espectáculos que integram um importante ciclo de teatro nórdico, e que vêm da Finlândia, da Dinamarca, da Noruega, ou da Suécia.

Não que a gente nova seja uma obsessão. Rodrigo Francisco, o actual e jovem director do festival, depois do desaparecimento do seu fundador Joaquim Benite, falou, durante a sessão de apresentação do festival, de uma ideia que lhe é cara – a ideia de transmissão de conhecimentos. É uma ideia crucial na aprendizagem de todas as artes performativas. É, ainda, uma ideia que deveria conduzir a vida moral das pessoas, articulando aquilo que elas têm, aquilo que elas conhecem, aquilo que elas são, e aquilo que elas devem aos outros. Para ilustrar e concretizar essa sua ideia, Rodrigo Francisco referiu aquilo que, no festival, é uma “homenagem aos mestres”, e que se pode centrar, este ano, em torno de três figuras: José Luis Goméz, Luís Miguel Cintra e Peter Stein. O primeiro, para lá de uma extensa e brilhante carreira no teatro e no cinema, fundou e dirige o importantíssimo Teatro de la Abadía, em Madrid, e participa no festival como actor, numa adaptação de “O Principezinho” de Saint-Exupéry, com encenação de Roberto Ciulli (“El Principito”). O segundo, Luis Miguel Cintra, é o maior actor português vivo e dirige a mais importante companhia de teatro em Portugal, a Cornucópia. O Festival apresenta “Ai Amor sem Pés nem Cabeça”, uma construção feita a partir de textos de teatro de cordel do século XVIII, que Luis Miguel Cintra quis como um espectáculo contra corrente actual, contra o fast-food cultural. De Peter Stein, enfim, o festival apresenta este ano duas encenações: “Le Prix Martin”, de Labiche (em francês), uma comédia irresistível, tornada genial por uma encenação cuja eficácia reside num trabalho de análise de texto e de direcção de actores que seria impossível fazer sem uma longa experiência e sem uma incrível acumulação de reflexão; “Krapp’s Last Tape”, de Samuel Beckett, com Klaus Maria Brandauer, um dos maiores actores de língua alemã da actualidade. É um monólogo, no qual Krapp ouve e comenta aquilo que gravou sobre si mesmo, trinta anos atrás, e em que comenta a sua pessoa de tempos em que era ainda mais jovem. Mas, no essencial, as coisas passam-se do mesmo modo com “Sala Vip”, de Jorge Silva Melo, escrito para ser encenado por Pedro Gil – uma subtil ilustração, tácita, da relação mestre-aluno naquilo que ela pode ter de mais saudável.

São só algumas das sugestões. Há duas óperas, e há o “Sonho de uma Noite de Verão”, de Mendelssohn, pela orquestra Gulbenkian, com direcção de Pedro Neves e Teresa Gafeira como recitante. O compositor começou a escrever o “Sonho…” aos 17 anos. Acabou-o muitos anos depois.

João Carneiro
in Expresso – Revista Atual, 29 jun 2013

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