O afropresente de Dorothée Munyaneza é o futuro que deu certo por linhas tortas

Pela terceira vez em Portugal, a coreógrafa ruandesa traz ao Festival de Almada o luto e a festa de uma comunidade de artistas negras, reparando as malhas que os impérios europeus teceram. Mailles sobe hoje ao palco, em apresentação única

Inês Nadais in Público 12 Julho 2022 | notícia online

Os corpos dos milhares e milhares que morreram, muitos dos quais nem sequer puderam ser devidamente enterrados, caminham com Dorothée Munyaneza desde que, com toda a hipersensibilidade dos seus 11 anos, viu começarem a amontoar-se à porta de casa os primeiros cadáveres do genocídio ruandês. Estão com ela, supomos, quando põe margaridas numa jarra e leva ao forno um bolo de chocolate – assim descrevia à rádio France Culture o ambiente lá em casa em pleno primeiro Inverno pandémico, a poucos dias de ver anulada a estreia em Paris da sua mais recente peça –, e seguramente estão com ela em Mailles (“Malhas”), que às 22h desta terça-feira, em apresentação única, o Festival de Almada faz subir ao palco grande da Escola Secundária D. António da Costa.

Aos seus mortos – os mais de 800 mil que em apenas cem dias se amontoaram no Ruanda, e que tratou de exumar em Samedi Détente (2014), a sua primeira criação enquanto coreógrafa, para processar o imperdoável alheamento internacional que sempre a feriu –, juntam-se agora milhões de outros. Todos os mais ou menos gloriosos, mais ou menos desapossados antepassados das seis artistas africanas ou afro-descendentes, fruto de velhas e novas diásporas, que a história da dominação e da predação europeia dispersou pelo mundo, de Port-au-Prince a Sevilha, e que a coreógrafa ruandesa hoje radicada em Marselha reúne em palco nesta sua terceira peça: Asmaa Jama, Elsa Mulder, Ife Day, Nido Uwera e Yinka Esi Graves (que, por ter dado à luz recentemente, será substituída por Moya Michael).

Asmaa Jama, poeta de 23 anos, e Nido Uwera, bailarina ruandesa com mais de 60, encarnam diferentes gerações da diáspora africana leslie artamonow
Ao centro, na imagem, Dorothée Munyaneza, a criadora do espectáculo leslie artamonow

Mailles”, diz Dorothée Munyaneza ao PÚBLICO por telefone, foi a forma mais justa e mais plural que encontrou de dar “continuidade” a um trabalho artístico fundado no dever do testemunho mas também no direito à catarse, e que, como a biografia destas mulheres, é um corpo híbrido de múltiplas raízes, filiações e derivações: a dança, o canto, a música, a palavra escrita e dita. Depois de Samedi Détente, que partia da sua experiência pessoal do genocídio e do exílio, perante a indiferença blasée do Ocidente, e de Unwanted (2017), em que estendia a palavra às vítimas das violações sistemáticas usadas como arma de guerra no Ruanda e aos mal-amados filhos que delas resultaram (dois mil a cinco mil bebés, segundo cálculos da Human Rights Watch), quis “continuar a expandir e a alargar o relato a outras vozes femininas” afins da sua, convidando a juntar-se-lhe algumas das artistas que, ao longo das digressões dos seus espectáculos (por cá, ambos passaram pelo Teatro Municipal do Porto), foi conhecendo e admirando. “Nos Estados Unidos, na América do Sul, na Europa, em África, encontrei mulheres de diferentes idades, de diferentes disciplinas, com quem tive vontade de colaborar. E claro que, perante esses encontros, tive de me perguntar o que é que se passou para que hoje haja afro-descendentes no Brasil, na América do Norte, no Haiti, na diáspora europeia. Sei a resposta, evidentemente: o comércio negreiro, que dispersou pessoas, famílias, corpos. E de alguma forma é essa violência que aqui queremos reparar.”

Muito literalmente, o espectáculo em que Dorothée Munyaneza se junta a uma jovem poeta dinamarquesa de origem somali, a uma bailarina etíope adoptada em criança por um casal de Roterdão, a uma performer haitiana, a uma ruandesa nascida no Burundi por via do exílio dos pais e hoje também radicada em França, e a uma artista de flamenco filha de uma ganesa e de um jamaicano trata de reparar as malhas que os impérios ocidentais desteceram à força para poder tecer, com inquantificável e inqualificável violência, as suas próprias mantas de retalhos coloniais e pós-coloniais. “Mailles nasceu dessa vontade de me rodear destas mulheres artistas e das suas vivências íntimas, que me tocam muito a nível pessoal e ao mesmo tempo ressoam numa história comum da Humanidade. Eu queria reunir num palco pessoas que a História dispersou e convocá-la através delas.” Para a desmanchar nos sítios em que ficou com costuras à vista, para a cerzir. Para a afundar, para a refundar. Para coser passado e presente num outro tipo de futuro, um afrofuturo, esse lugar movediço e transumante de onde todas elas já parecem vir.

Talvez Hlengiwe, Keyierra e Zora flutuem sobre Maiiles como os figurinos sem corpo que Stéphanie Coudert deixou a pairar, fantasmáticos, entre as seis mulheres de carne e osso que a peça convoca, e nas quais a qualquer momento poderão reencarnar. O passado e o presente, aqui, estão sempre a vir à tona – e é difícil, ou mesmo impossível, discernir onde um acaba e o outro começa.

Chamamentos

Da violência da escravatura no Haiti, onde emergiu a primeira república negra da História, à violência dos sucessivos naufrágios de migrantes subsaarianos no Mediterrâneo ou da polémica política britânica de deportação de requerentes de asilo para o Ruanda (sim, em 2022), o fio parece contínuo. Vai-se desenrolando como um novelo (malhas…), mas o que Dorothée Munyaneza tricota nesta peça vem de um lugar menos factual, mais poético. Outro contínuo, mas de palavras, sons e movimentos criados por uma comunidade auto-empoderada de artistas negras cujas histórias radicam, mas não se esgotam, nos caprichos por vezes insondáveis da geopolítica.

Não por acaso, Mailles começa com um chamamento. O repique de um sino, e depois outro, ecoando as primeiras etapas do processo de criação: um vaivém de perguntas e respostas que, apesar da distância, permitiu à coreógrafa ir conhecendo as suas cúmplices e forjando “um vocabulário” colectivo. Da sua nota de intenções datada de 2019, antes da pandemia, já emergiam tópicos que todas eram capazes de articular na primeira pessoa: “Aqui, ali e alhures conhecemos sismos, sangue, crises, alegrias, trevas, risos e lágrimas. Navegamos entre línguas múltiplas e danças do dia-a-dia (…). Estamos espalhadas entre (…) diferentes continentes. Estamos ligadas, realmente solidárias, e isso dá esperança.” E também uma condição comum, já não exactamente de testemunhas, mas de “portadoras de histórias (…) marginalizadas, maltratadas, segregadas, consideradas insignificantes”, de “palavras que ouvimos pouco, ou não ouvimos de todo, na cacofonia quotidiana”, de “corpos que cruzamos no dia-a-dia mas não é frequente vermos em palco”.

leslie artamonow

Entre elas, juntando-as e separando-as, interpunha-se esse ADN simultaneamente maligno e benigno da diáspora. Que, inevitavelmente, se tornou o tema da peça a partir do momento “milagroso” em que enfim puderam estar juntas. “Partimos muito de improvisações sobre o modo como navegamos o espaço, à luz das nossas narrativas íntimas e da história dos movimentos das nossas famílias. Que nem sempre são forçados, como os dos antepassados da Ife Day, levados para o Haiti para serem escravizados. A Yinka Esi Graves foi viver para Sevilha por decisão pessoal, intencional. Não há só constrangimento nesta malha que somos e que vestimos em palco. Aliás, os figurinos da Stéphanie Coubert restringem-nos, mas também permitem que nos manifestemos, que nos expandamos. Porque entre as nossas histórias também há migrações voluntárias que não derivam de exílios trágicos”, sublinha Dorothée Munyaneza.

Também já estava nessa nota de intenções uma pergunta sacada das Méditations Africaines (2013) do economista, escritor e músico senegalês Felwine Sarr a que vamos vendo seis mulheres responderem eloquentemente a partir das suas histórias diaspóricas: “Somos de onde nascemos? De onde morremos? Dos interstícios?”. E as respostas não vêm só, ao contrário do que seria legítimo antecipar, de um lugar de dor e de raiva, mas também de um lugar “de beleza e de alegria”, até “de amor”. “Estávamos fragilizadas pela pandemia, não nos podíamos mexer, não nos podíamos encontrar, havia imensa gente a morrer, de covid-19 ou de outras causas; foi também o período em que morreu o George Floyd e em que se tornou visível a violência contra as pessoas negras em diferentes países – enfim, havia muita energia mortífera. Eu queria que o facto de estarmos juntas em palco pudesse servir para celebrarmos as nossas vidas.”

As roupas suspensas que ondulam por cima do sapateado sísmico de Yinka Esi Graves ou do luto de Ife Day, dos seus corpos faiscantes de azul e laranja, também estão ali para iluminar o caminho, não apenas para o escurecer, ainda que imponham no palco a terrível carga também ela mortífera dessa “strange fruit” cantada pela grande heroína de Dorothée Munyaneza, Nina Simone. “Para mim elas são todas essas pessoas que nos acompanham, que nos transportam, que nós transportamos, se continuarmos na metáfora das roupas [em francês, “porter” também significa vestir], mas cujas vidas foram interrompidas – ou que estão em devir, ou mesmo por vir.”

A performer haitiana Ife Daye leslie artamonow

Impossível não ver nelas, também, esses corpos negros por nomear, naufragados aos milhares, no Atlântico do comércio esclavagista ou no Mediterrâneo de hoje: “Lembra-te do mar, uma garganta entre nós”, diz às tantas Asmaa Jama, faca afiada cravando-se quase docemente na nossa pele branca e europeia. Mas, de novo “sem explicitar tudo”, Dorothée Munyaneza convida-nos a ler nessas figuras sem corpo uma alusão às mudanças de pele que, como para as serpentes, talvez sejam condição de sobrevivência para os humanos: “Como é que nos desembaraçamos de certas peles? E como é que nos apropriamos de outras para termos mais mais força e mais esperança face aos perigos com que podemos defrontar-nos ao longo de uma vida?”.

Extravasar

No caso das seis intérpretes de Mailles, talvez essa pele proceda do mesmo tipo de inteligência adaptativa que o mangal, o ecossistema “borderline, costeiro, aqui mas quase ali” a que Yinka Esi Graves compara a sua família materna, fundada por uma negra de 21 anos e por um mercador judeu de 61. Ou a sua melhor amiga de infância, “meia senegalesa, meia malgaxe, das duas costas de África”. Uma criatura do mangal, ela própria: “Deixem-me fazer-vos a lista dos países em que já vivi: Inglaterra. Nicarágua, Guadalupe, Cuba, Espanha. Estou dividida em cinco. Cada parte de mim detém uma verdade diferente.”

Mailles é o espectáculo da exposição – da libertação – de todas essas verdades “muitas vezes retidas”. “Enquanto pessoas racializadas, há lugares em que dizermos o que pensamos, o que sentimos, o que queremos, o que procuramos não é autorizado. Aqui reivindicamos esse espaço, confiscamo-lo. E o palco torna-se o lugar que autoriza a palavra, a liberdade de expressão; que nos autoriza a plantar as nossas sementes, e a extravasar. Como diz a Nina Simone: ‘I will tell you what freedom is: no fear.’ É essa a liberdade que eu quero que atinjamos nesta peça. A liberdade de não ter medo, de nunca mais ter medo.”

Dorothée Munyaneza: um corpo de trabalho entre a dança, o canto e a palavra escrita e dita leslie artamonow

Mas talvez a utopia possa ir ainda mais longe, em direcção a formas de enraizamento que respeitem as conquistas do desenraizamento. “Somos todas poliglotas: falamos inglês, somali, neerlandês, espanhol, francês, crioulo, kinyarwanda, dinamarquês. Esse domínio nasceu da travessia, da necessidade de encontrar um lugar sem deixar de pertencer a diferentes mundos. O movimento, quando é desejado e consentido, é um privilégio – que infelizmente é mais raro para quem vem de onde eu venho. Até hoje agradeço a possibilidade de mudar de país, e de em cada lugar fazer um novo lar onde posso reverberar, e novas famílias às quais posso pertencer. Claro que pertencer pode criar dores incomensuráveis. Mas podemos ter várias terras de acolhimento.”

Os sinos voltam a tocar, as perguntas continuam. “Devo lutar contra o facto de pertencer a diversos lugares? Pertenço de facto a algum lugar? Ou já não procuro pertencer, mas extravasar, transbordar? Quero realmente estar no centro? E se sim, como?”. Mas Mailles termina com uma resposta. Um slogan, um manifesto que resume a comunidade reunida nesta peça: “Somos as pessoas do futuro.”

Por uma vez, Dorothée Munyaneza é absolutamente taxativa quanto ao que devemos ver no seu terceiro espectáculo. “Para mim, esta peça não é sobre o que se passou, é sobre o que se está a passar. Neste presente, nós já somos o futuro. E sabê-lo torna-nos temíveis, torna-nos poderosas. Acorda a consciência da potência naquelas que se sentem sem poder, fora do poder, na periferia do poder. Acredito nisso: o futuro parece-se tremendamente connosco.”

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