Noite de Reis em cena no Teatro Municipal Joaquim Benite

Cristina Cargaleiro in Jornal Desacordo 08 Outubro 2022 | notícia online

A Companhia de Teatro de Almada presenteou, no dia 7 deste mês, os seus espetadores com a exibição da peça Noite de Reis, da autoria de William Shakespeare. Este conta com a encenação Peter Kleinert, tradução de António M. Feijó e interpretação de André Pardal, Ariel Rodriguez, Binete Undonque, Diogo Bach, Carolina Dominguez, Erica Rodrigues, Ivo Marçal, João Cabral, João Farraia, Leonor Alecrim e Pedro Walter.

Estima-se que foi escrita no ano de 1601 e encontra-se entre as mais procuradas comédias de William Shakespeare (1564-1616).

Noite de Reis é uma peça utópica e antiga com a ambição de explorar perante o público temáticas polémicas, tais como a identidade e o género, despertando nele simultaneamente profundos sentimentos de amor, alegria, melancolia e esperança.

Peter Kleinert adquiriu a sua fama e reconhecimento internacional graças ao seu trabalho inigualável  enquanto encenador e dramaturgo. Os já existentes fãs portugueses e muitos outros que ainda estariam por vir foram presenteados, em 1982, com a sua direção para a Companhia de Teatro de Almada na peça A excepção e a regra de Bretch, co-encenando com Peter Scrotch.  O seu trabalho viu-se transferido de volta para diversas cidades da Alemanha nas décadas seguintes.

A data da unificação da Alemanha Oriental e Ocidental deu lugar a uma nova vocação de Kleinert, que se tornou professor da Academia de Teatro Ernest Bush, chefiando o departamento de Encenação da instituição por um período superior a 20 anos.

Em 2018 Kleinert regressou a Almada para dirigir a peça A boa Alma de Sé-Chuão, também de Bertolt Brecht.


Fotografia de Rui Mateus

A beleza da peça iniciou a sua anunciação com a história de Violeta, sobrevivente de um naufrágio no qual pensa ter perdido o irmão, chega à Ilíria. Violeta tem receio de se anunciar como mulher num país desconhecido, levando-a a disfarçar-se de homem e apresentar-se como Cesário. Olívia renega a companhia de qualquer homem, após a morte do irmão.

Cesário, ficando ao serviço do Conde Orsino, é encarregado de entregar as suas cartas de amor a Olívia. Vendo-se Orsino obrigado a aceitar a rejeição, simultaneamente, Olívia apaixona-se por Cesário (Violeta). Violeta, no entanto, sente-se forçada a conformar-se com o amor não correspondido que nutre por Orsino. Estando neste momento a confusão completamente instalada, esta dá lugar ao caos quando se descobre que o irmão de Violeta sobrevivera ao naufrágio.

Foi uma peça muito interessante, mantendo um equilíbrio saudável entre o romance, drama, momentos de suspense e comédia. Os fãs de musicais certamente não ficaram desiludidos, pois glamorosos momentos musicais são prometidos, elevando a beleza e charme natural de cada personagem, à qual apenas se puderam sobrepor os inúmeros momentos “de morrer a rir” resultantes da combinação de qualidades enumerada acima.


Fotografia de Rui Mateus

Apenas uma curiosidade se mantinha, a perspetiva dos talentosos atores que dão corpo a estas personagens icónicas. Assim, decidi entrevistar duas das atrizes.


Entrevista com Leonor Alecrim

Como se sente a desempenhar o papel de Violeta?
É um desafio. Um desafio bom porque ela está na maior parte do tempo a fingir ser outra pessoa. Mas, ao mesmo tempo, toda a maneira como ela se debate sobre as questões do amor e sobre o relacionar-se com outro que acaba por estar muito mais em questão a pessoa que está por detrás desta máscara do que propriamente o conceito ou o género e isso é um desafio interessante, como é que nós nos ligamos ao outro.

Em que aspetos considera que a sua personagem cresceu mais, emocionalmente?
Acho que cresceu emocionalmente sobretudo neste sentido do que significa falar sobre o amor e contactar com energias e realidades diferentes, não associando apenas o amor a uma ideia que tem a ver com o masculino e o feminino, mas que, de facto, pode se revelar de muitas maneiras. E como estar no papel masculino fez com que ela começasse a ver isso.

Qual foi a mensagem da peça para si?
Eu acho que a peça tem várias mensagens sobre o que é apaixonarmo-nos por outro ser humano. Se é real esse amor ou é uma ilusão, uma efabulação e uma história, construída a partir daquela imagem. Acho que a peça fala muito destas contradições entre aquilo que sentimos e a maneira como agimos. E acho que é muito interessante a maneira como o Shakespeare fala sobre as questões de género e o que significa estarmos no nosso papel ou num outro. Talvez num outro consiga-mos ser ainda mais sinceros. Acho que essa desconstrução da identidade, do eu e da máscara é algo que ele sabe construir muito bem.

Tendo em conta, o facto de a peça ter sido escrita por volta de 1601, considera a mensagem da peça atual ou ultrapassada?
Acho que é bastante atual porque o Shakespeare, apesar de escrever para o seu tempo, tinha uma inteligência emocional e uma atenção à maneira como o ser humano funciona muito grande e é por isso que as questões que ele põe nas peças são tão universais e intemporais. Ele põe questões que estão sempre presentes no mundo. Do que significa ao fim ao cabo ser humano, o que é a essência do ser, portanto, vamos sempre encontrar coisas e questões novas em temas que estão constantemente a ser transformados, mas que têm aquela base que só ele soube expor muito bem.

Quais são as suas ambições futuras enquanto atriz?
Sobretudo conseguir criar a minha linguagem que está muito entre a dança e o teatro. Eu não quero ser apenas intérprete e atriz, também quero ser criadora. Acho que tenho essa, não sei se é ambição ou apenas desejo, sonho, como é que poria, não sei se poria como ambição, mas é sobretudo ter também a construção de um caminho que é o meu e é uma maneira de expressar algo ou fazer arte de uma maneira muito pessoal e própria para chegar ao outro.


Entrevista com Erica Rodrigues

Como se sente a desempenhar o papel de Olívia?
A título profissional é um papel muito curioso. Sobretudo porque quer a dinâmica do grupo, quer o próprio encenador, deixaram-me com muita liberdade para criar. Artisticamente porque explorei imensas variantes quer de dança, quer de canto, quer na própria interpretação. E, porque a própria abordagem em si, fez-me explorar a nível do meu pensamento.
Esta peça trata muito de questões de género, problemáticas em relação ao próprio amor e a própria relação com o amor.
Estamos numa época em que falamos muito de problemas de género, o binário, não binário e interpretar a Olívia foi também aceder muito a essas problemáticas e discuti-las enquanto grupo.

Em que aspetos considera que a sua personagem cresceu mais, emocionalmente?
Sendo que a Olívia começa de uma forma, num estado emocional e acaba quase no seu oposto, o arco emocional é muito grande.
A maneira como está escrita propõe à Olívia também essa travessia por diferentes estados emocionais onde ela não se queria relacionar de certa maneira e inevitavelmente, por via dos acontecimentos, ela passa a relacionar-se, portanto, nem digo crescer, eu digo que ela se atreve a vivenciar vários estados emocionais ao longo da peça.

Qual foi a mensagem da peça para si?
Tantas. Da peça e do espetáculo porque a abordagem do Peter também elevou o espetáculo a outro sentido.
Esta peça de facto toca muitas questões: problemas de género, a ideia do amor, da imagem que se tem e da maneira como se aborda o reflexo do outro perante nós próprios neste caso.
No espetáculo, da própria sustentabilidade e a noção da problemática climática, bem como o mundo em que nos encontramos entre o luxo e a própria ideia de lixo. Nós circulamos entre esses dois pontos, portanto, todas essas problemáticas são inevitáveis quer na peça, quer no espetáculo. Estas colam-se e o que eu sinto foi que o Peter, para além das (problemáticas) que já existem na peça, ele aumentou-as no espetáculo.

Tendo em conta, o facto de a peça ter sido escrita por volta de 1601, considera a mensagem da peça atual ou ultrapassada?
Nada, nada ultrapassada. O Shakespeare é um conhecedor tão forte da máquina humana que mesmo sendo dos anos 1600, ou nós enquanto sociedade continuamos em ciclos ou é de facto um visionário e percebeu exatamente como é que nós funcionamos. E atravessa-nos.
Nada ultrapassada. Sempre renovada, sempre pertinente, sempre no ponto.

Quais são as suas ambições futuras enquanto atriz?
A minha ambição futura enquanto atriz é conseguirmos uma estrutura artística em Portugal mais firme e mais coesa, sobretudo com direitos que nos defendam.
E que nos coloquem numa situação favorável e não de constante precariedade, como é agora esta situação do estatuto. É muito preocupante, porque estamos de repente com insónias a passar um recibo verde.
Esse é o meu posicionamento em termos de longevidade artística. Eu reconhecer-me e reconhecer os meus colegas na própria classe enquanto trabalhadores com legitimidade para o fazer. E também com um olhar acerca de no próprio país e no próprio estado, com um olhar sobre a classe como trabalhadores e não como um hobbie. Essa é a minha maior ambição.

Este espetáculo contou com o apoio o apoio da União de Freguesias de Almada, Cova da Piedade, Pragal e Cacilhas e das Juntas de Freguesia de Laranjeiro e Feijó, e encontra-se em cena até dia 30.

Escrito por: Cristina Cargaleiro
Editado por: Alexandre Guerreiro

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