No teatro há a grande felicidade de contarmos com a imaginação do espectador

NOS ÚLTIMOS DIAS DE JULHO ENTREVISTÁMOS RODRIGO FRANCISCO. O DIRECTOR DO FESTIVAL DE TEATRO DE ALMADA DEU A VEZ AO AUTOR E ENCENADOR DE “UM GAJO NÃO É A MESMA COISA” PARA UMA CONVERSA ONDE O TEATRO E A GUERRA COLONIAL SE MISTURARAM.

Joaquim Paulo Nogueira in Rua de Baixo 09 Outubro 2021 | notícia online

Tal e qual como acontecera na conversa com Luís Vicente, foi na Sala Experimental do Teatro Municipal Joaquim Benite, diante do cenário de “Um gajo não é a mesma coisa”, que fizemos a entrevista. Estávamos no final do 38 ª Festival de Teatro de Almada.

Há uma história sobre Rodrigo Francisco que encontro em vários lugares, e que dá conta da não premeditação da sua relação com o teatro. Do que lhe vou conhecendo sei que ele se dá bem na pele desse desprendimento: tinha ido à Companhia de Teatro de Almada tentar encontrar um trabalho para ter dinheiro para ir de férias com uns amigos e ficou. Começou por participar na montagem de “O Carteiro de Pablo Neruda”, espectáculo que só viu quando foi ao teatro numa ida organizada por uma sua  professora da Emídio Navarro, a escola secundária onde estudava. Aí teve um choque com aquele cenário que só tinha visto no estaleiro: as luzes, o som, os actores, apanharam-no. Foi continuando na companhia, colaborando nas montagens. O seu apego aos livros, à literatura, fez com que este jovem que foi para Línguas e Literaturas Modernas, que queria ser escritor, despertasse a atenção de Joaquim Benite que o foi desafiando para colaborar com as edições, com a imprensa, com a assistência de encenação e até para escrever um texto, Quarto Minguante, que Benite encena, assim como Tunning, já em 2011. Nesse aspecto é preciso ter conhecido Joaquim Benite, tanto a sua cultura, ele tinha sido jornalista num tempo em que muitas vezes os jornalistas tinham um conhecimento quase enciclopédico, a sua paixão pela literatura, como o seu constante desafio às pessoas com quem trabalhava, para se compreender a forma como terá preparado Rodrigo para lhe suceder.  E entretanto já se passaram quase dez anos desde o momento em que, em 2012 Rodrigo Francisco substituiu Joaquim Benite na direção da Companhia e neste espaço de tempo já encenou e dirigiu vários espectáculos da Companhia de Teatro de Almada e, naturalmente dirigiu as várias edições do Festival de Teatro de Almada.

nós temos a sorte de trabalhar nesta arte tão livre que nos permite fazer tantas coisas porque estamos articulados com a imaginação, com a inteligência do espectador

Em 2016, numa entrevista, e quando confrontado com o facto de escrever, dirigir e encenar, confessou que não se via a encenar um texto seu e que, pelo respeito que tinha por esse trabalho, dificilmente voltaria a escrever um texto de teatro. É por isso particularmente interessante sabermos como é que a ideia deste texto e do espectáculo aconteceu.

“ – Este tema veio ter comigo. Um dia estava aqui sentado no escritório no Teatro  e o senhor que era o proprietário da empresa de manutenção do edifício bate-me a porta e, cumprimenta-me, e eu sinto que ele quer continuar a falar. “ Então está tudo bem.”, digo-lhe. “ E ele, “ -Sim, acabei de me divorciar”. Era um senhor com 71 anos. Conversámos durante uma tarde inteira. Falou-me da sua experiência na guerra colonial e eu comecei a perguntar-me de que é que este homem se tinha realmente separado. Ao ver que eu estava muito interessado naquele seu passado de ex-combatente disse que ia participar no almoço do Cinquentenário da partida do Batalhão para Angola e convidou-me para ir com ele. E eu fui. E pela primeira vez em quase 50 anos aquele homem foi àquele almoço sem a sua mulher”.

Aquele almoço impressionou-o.

“- Eu não sabia que aquelas coisas existiam, aquelas pessoas todas juntas, naquele momento tive um  fresco do que era a sociedade portuguesa naquela altura.”. Ainda sem saber como havia de tratar o tema, sentiu que o tinha de fazer no teatro.  Entrevistou três antigos combatentes, viu o documentário de Joaquim Furtado, leu os livros de Maria José Lobo Antunes, de Sara Primo Roque e de Vasco Luís Curado sobre o tema da construção da memória. A certa altura deu por terminada a investigação, ele não queria fazer uma tese, sim um espectáculo.

“- Pus-me a escrever, chegamos à ideia desta coprodução com a Companhia de Teatro do Algarve, fui mostrando o texto ao Luís, aos atores e  também as pessoas que eu tinha entrevistado.”

A circunstância de ser uma matéria de ficção baseada em factos, levou, especulo eu,  possivelmente a uma outra relação com o material dramatúrgico. Diz o Rodrigo:

“-Eu estou numa fase da minha carreira em que me divirto muito a investigar quando parto para um espectáculo. Divirto-me agora muito ao verificar que os meus espectáculos são muito diferentes entre si na forma de serem montados, na forma da própria linguagem. Eu acho que os textos trazem dentro deles a chave para os descodificarmos na sua leitura e depois para os remontarmos na cena.”

Rodrigo não tinha uma relação directa com a guerra colonial. Há um tio que combateu na Guiné mas nunca se falava disso:

“- Faz parte do povo português não falar das coisas que nos afetam que nos são próximas. É verdade que eu nos últimos anos ia assistindo a espectáculos que abordavam o tema da guerra colonial e nunca ficava completamente satisfeito com a forma como era visto o ponto de vista dos ex-combatentes. Ás vezes chegava até ficar um tanto indignado, pensava que estes homens mereciam que se olhasse para o que aconteceu de uma forma mais complexa, mais abrangente.”

Guardado estava o bocado para quem o haveria de contar. Aquele homem de 71 anos que se divorciara da mulher porque queria libertar-se da guerra, fora o gatilho. O processo foi demorado, passaram-se dois anos e meio, nesse tempo Rodrigo teve um acidente rodoviário que o atirou para uma longa recuperação:

“- Dois anos e meio é muito tempo e acontecem muitas coisas nas nossas vidas. Eu também passei por algumas coisas neste período,  algumas pessoas que me conhecem mais proximamente e que vêm o espetáculo,  percebem que há ali coisas pelas quais eu também passei. Nós vamos crescendo, a forma como perspetivamos a vida também muda. Quanto mais jovens somos mais tendemos a reagir muito rapidamente às coisas, depois vamos perdendo tempo de reação com a idade. Vai-se ganhando esse lastro. Essa conversa no escritório do teatro foi em Fevereiro, em Março fui ao almoço e o acidente aconteceu em Abril. Ou seja o acidente proporcionou-me também a possibilidade de pensar muito neste projeto porque eu durante um mês e meio não me pude levantar da cama.”

O corpo é cheio de trauma, dizem as actrizes de Aurora Nega, um corpo quase  fantasmático, diz o Corpo Suspenso. E aqui?

“- À medida que eu ia escrevendo ia tendo imagens, laivos não coisas muito definidas, a pergunta que eu me pus era “- Como é que se põe em cena vozes dentro da cabeça de uma pessoa?”.  Porque isto é um texto sobre um homem que tem vozes dentro da sua cabeça. Como é que o ator contracena com essas vozes do passado no presente? O Vicente nos ensaios de leitura usou uma técnica que era a de marcar a três cores as suas próprias falas para diferenciar aquilo que dizia ao público,  aquilo que ele dizia a si mesmo,  aquilo que ele dizia aos outros. E ter esses vários planos dentro da mesma cena só é possível no teatro e no cinema. Acho que seria muito difícil de outro modo, nós temos a sorte de trabalhar nesta arte tão livre que nos permite fazer tantas coisas porque estamos articulados com a imaginação, com a inteligência do espectador “

“- Sempre que se aposta na inteligência do espectador ficamos a ganhar!”

Dou-me conta de que esta ideia da imaginação é recorrente, não só neste conversa, também em outras entrevistas. E que talvez se constitua como uma marca identitária deste homem que ficou no teatro, que conseguiu um lugar próprio no teatro, porque andava sempre com os livros atrás. Os livros, o que lá se conta, só existe no momento, e no modo, em que o leitor os concretiza em si.

“- Uma coisa que me preocupava muito era que eu queria que as pessoas acabassem por perceber alguma coisa desta peça, desta história, porque se tu fazes o espectáculo e depois ninguém o entende tens um problema. “

À medida que ia escrevendo o texto ia mostrando aos amigos e a reacção não era muito entusiasmante:

“- Eles diziam, “Olha eu gostei muito de ler isto mas não percebi nada”. E então eu achava que ia acontecer isso, que as pessoas iam gostar por exemplo muito da música do Afonso mas que não iam perceber nada do espetáculo. “

E não foi nada disso que aconteceu quando começaram a trazer pessoas para assistir aos ensaios.

“ As pessoas percebiam e eram capazes de se relacionar com aquilo que acontecia mesmo não sendo muito cómodo tu teres uma cena que é naturalista,  quase telenovela,  depois uma  cena onde a personagem começa a falar consigo própria, por exemplo aquela personagem que está a morrer e que aquilo que diz se passa  dentro da cabeça daquele homem. Onde acontece aquilo que a Maria José Lobo Antunes estuda muito bem no seu livro,  que é a forma como este homem constrói a sua memória.  Estamos a ver isso acontecer ali ao vivo. Ele não está a recordar aquilo que aconteceu, ele está a olhar para a imagem daquilo que aconteceu e aquilo que o furriel lhe diz é aquilo que ele quer que ele lhe diga.  Não é o que aconteceu, é algo que ele cristalizou dentro dele para poder conviver com essa realidade.”

Eu acho que o teatro é o sítio por excelência em que podemos brincar com isso, temos a liberdade de o público estar disposto a estar no território da fantasia, temos essa felicidade de podermos jogar com uma coisa infinita

Fico a pensar que afinal o trabalho principal destes espectáculos todos que tenho visto sobre este tema não é o da desconstrução da memória, é o da sua destruição. Digo-lhe e Rodrigo contrapõe:

“- O que estamos aqui a assistir é ao modo como a memória se constrói. O que eu senti naquele primeiro almoço a que fui é que esses homens tem uma grande necessidade de falar e alguns contam até coisas muito violentas que cometeram. Estes homens estão a chegar quase ao limiar das suas vidas e querem perceber o que aconteceu. Eles querem divorciar-se da guerra. “

Começámos então a falar especificamente do objecto teatral. Chamei a sua atenção para a forma como o espaço cénico estava muito organizado, a própria delimitação da boca de cena com luzes da ribalta, a demarcação do espaço dos sonhos, o lugar dos músicos:

“ Eu pedi à cenógrafa, a Céline Demars,  um dispositivo muito simples, fácil de transportar e que pudesse ser adaptável aos vários espaços que a peça aborda, desde uma camarata, um baile de aldeia, um restaurante de bairro.”

Falamos das fotografias, as fotografias que são usadas em cena e com as quais os ex-combatentes se relacionam, são fotografias reais mas que se cruzam com a ficção que eles propõem.

– Eu dizia meio a brincar que isto era uma peça documental disfarçada.”

Referi os microfones, a música, o efeito de distanciação que ele provoca. O Rodrigo aceita a ideia mas desvaloriza-a:

“ – Este efeito do distanciamento não é muito original e muito recente. Os gregos já o faziam. Vamos ganhando novas formas, novas possibilidades, mas os princípios são aqueles que já vêm de à mais de dois mil anos” – e depois refere que em relação aos microfones o Luís Vicente lhe perguntava porque é que não usava microfones sem fios, para os fios não andarem sempre a atravessar a cena. – “ E eu dizia-lhe que não,  que isso parecia muito a Eurovisão.”

Trago-lhe a cena entre o pai e o filho, eles chamaram-lhe a cena das gaivotas, achei-a notável, na representação de Luís Vicente, na contracena de João Farraia e sobretudo na construção dos silêncios:

“-Nós chamamos a cena das Gaivotas porque aquilo passa-se numa varanda, ouvem-se as gaivotas, e presume-se que é a primeira vez que o filho vai à casa do pai, é uma cena de não ditos, é como na vida, se nós gravarmos os nossos diálogos da nossa vida quotidiana uma grande parte das coisas que dizemos uns aos outros são sempre ao lado, nunca falamos directamente. Gosto muito do meu mestre, Hemingway, ele usava a metáfora do iceberg, o que é importante é tudo o que está lá submerso. O Pinter também faz isso como ninguém.”

Quanto a mim, já o referi,  na estrutura da peça há uma fortíssima semelhança com a estrutura do psicodrama. O Vicente, como o sujeito psicodramatizado, todos os outros personagens como egos auxiliares. Na verdade Vicente é o único que representa o mesmo personagem sempre ( embora também se represente mais novo) e todos os outros são personagens que vão permitir a recriação desta viagem de Vicente pelo interior dos seus fantasmas. Quando o confrontei com isso percebi que nunca tinha feito essa associação:

“ – Eu acho que o teatro é o sítio por excelência em que podemos brincar com isso, temos a liberdade de o público estar disposto a estar no território da fantasia, temos essa felicidade de podermos jogar com uma coisa infinita. Aquele homem  não é o persona é uma estrutura que é habitada por uma personagem.. A Lara faz uma ex-namorada de um prisioneiro de guerra e a namorada de um dos outros personagens. Aliás é isso que possibilita que o João Farraia e  o outro ator que andam na casa dos 30 anos possam fazer estes combatentes de 70 anos. E assim o espetáculo torna-se nisso também, nas memórias deles quando tinham aquela idade. E  o público aceita isso imediatamente.  O Luís Vicente está a discutir com a namorada do filho numa cena e logo na cena seguinte está na cama com a atriz que fazia esse personagem. Quando eu comecei a escrever eu já sabia que ia fazer a peça com estes atores,  isto não é um texto de teatro autônomo é um guião,  eu não sei se vou publicar o texto. “

A guerra colonial vista pelo lado dos ex-combatentes

Rodrigo já o tinha dito logo do início, queria dar um ponto de vista que não encontrava nos espetáculos que via sobre este tema. 

“ Eu e tu não passamos por essa experiência, o que é estar numa guerra e justamente por não termos passado julgo que não temos o direito de julgar estes homens. Na guerra um homem que mata o outro soldado é um assassino ou não é um assassino? Há homens destes que praticaram crimes de guerra sim mas também são vítimas de terem sido arrolados para uma guerra por uma ditadura.  Também são vítimas ou seja o mundo é muito mais complexo do que aquilo que parece,  do que o binarismo do like ou do not like  faceboquiano. Este binarismo que está afetar nossa cultura, a nossa civilização, do meu ponto de vista é muito perigoso porque impede-nos de pensar.”

E insiste nesta ideia, trazendo-a para o trabalho do teatro:

“- O teatro é um lugar onde podemos ter em cena dois pontos de vista completamente diferente antagónicos que se confrontam, sem que haja essa função de passar uma mensagem que é uma coisa que eu abomino. Temos de nos defender de julgar. Para estes homens, muitos deles partiram no início de 70, eram rapazes, iam para ser heróis, e quando regressaram estavam numa situação muito dramática, eles regressaram como assassinos. Eles não pediram para ir à guerra. Conheci uma fisioterapeuta em Alcoitão já de uma certa idade que contou que quando era jovem se lembra de, depois do 25 de Abril, haver terapeutas, gente à época muito de esquerda, que estavam a tratar muito mal estes veteranos de guerra. Houve até um levantamento e uma greve por causa disso.  Estamos a falar de homens, alguns deles sem braços e sem pernas, eram os homens cesto, viveram no lar militar até ao fim das vidas,  muito apartados dos olhos da sociedade.

Volta ao almoço que o impressionou tanto e que também esteve na origem deste espectáculo:

“- E foi isso que eu assisti naquele almoço,  homens que se vêm uma vez de 10 em 10 anos,  e que têm uma  irmandade entre eles. “ 

Há um momento neste jantar que inspirou o final da peça. É uma espécie de final, quando eles chamam, pelo nome, os combatentes. 

“– Podiam estar de muletas mas compunham as suas boinas e gritavam presente.  Fiquei muito comovido sabes porquê?  Porque alguns destes homens tiveram percursos de vida muito diferentes,  alguns deles via-se que era muito progressistas, que olhavam com uma certa ironia, uma certa crítica,  estes rituais, por exemplo as canções em que falavam de matar os turras, os hinos dos batalhões, mas quando ouvi a chamada todos eles responderam, os que estavam presentes E é muito comovente ver homens de 70 e tal anos a chorar pelos outros homens que não responderam, que morreram há 50 anos.”

E reforça ainda outro aspecto particularmente grave: os soldados africanos que combateram com o exército português e que foram por este abandonados e assim, dizimados. 

O mundo é tão aborrecido quando estamos muito cheios de nós mesmos

Rodrigo insiste num ponto: o teatro não julga, não veicula mensagens, não toma partido, não é uma arena política, a diversidade de ideias é essencial. Conta que a viveu no próprio elenco, na própria equipa de criação durante o mês que passaram a ler e discutir o texto, o clássico trabalho de mesa, é uma tradição muito antiga não é Rodrigo, digo-lhe, ele responde sorrindo, não sei fazer de outra forma, era assim que o Joaquim trabalhava mas de uma forma muito mais profunda que era a contextualização histórica dos textos,  ele fazia isso,  agora já está muito facilitado, trouxe alguns livros,  têm estas referências: 

“Houve discussões acesas entre os próprios atores sobre as personagens  e nunca se chegou um consenso no sentido de dizer isto é assim. São conflitos que passam para a cena. Conflitos que passam para a cena de uma forma insanável e esses conflitos não se resolvem. Nem em nós nem nos espectadores.  Quando falo com alguns sobre esse espetáculo aquilo que eles me dizem é que não resolve esse problema dentro delas nas suas cabeças. Isso é bom, que nós nunca estejamos seguros daquilo que somos, que tenhamos a capacidade de nos pôr em causa, de refletirmos. Senão é tudo muito aborrecido, muito um estarmos cheios de nós mesmos.”

Em Outubro quando o espectáculo voltar aos palcos da Sala Experimental do Teatro Municipal Joaquim Benite, haverá também uma série de encontros organizados pela antropóloga Maria José Lobo Antunes, autora Regressos Quase Perfeitos, memórias da guerra em Angola.

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