No futuro, 2019 será o ano em que o Festival de Almada recebeu Bob Wilson e Isabelle Huppert

Numa edição em que o espectáculo central é uma evidência, haverá palco também para propostas de Juni Dahr, Jan Lauwers, Phia Ménard ou do homenageado Carlos Avilez. Como sempre, de 4 a 18 de Julho

Gonçalo Frota in Público, 14 Junho 2019 – notícia online

“No futuro, quando olharmos para trás”, escreve Rodrigo Francisco no texto de apresentação da 36.ª edição do Festival de Almada, “2019 será ‘o ano em que vieram o Robert Wilson​ e a Isabelle Huppert’”. Não será de facto fácil escapar à evidência que é colocar no centro do mais importante festival de teatro português um acontecimento da magnitude deste: um dos mais influentes encenadores das últimas décadas e aquela que é para muitos a maior actriz viva juntos num espectáculo que marcará fatalmente o ano teatral em que nos encontramos. Mas dentro desse acontecimento há também um sinal que Almada pretende dar ao país: 2019 é igualmente o ano em que o festival tenta recuperar uma das suas “características mais distintivas”, a de dar palco a peças de criadores contemporâneos fundamentais. Depois de Peter Brook, Peter Stein, Claude Régy, Patrice Chéreau ou Peter Zadek, chega-nos Robert Wilson. Com ​Isabelle Huppert, é bom não esquecer.

A 12 e 13 de Julho, portanto, numa parceria com o Centro Cultural de Belém, Mary Disse o que Disse, um monólogo de Darryl Pinckney, marca o terceiro encontro criativo entre Wilson e Huppert, mais de 20 anos passados sobre Orlando, de Virginia Woolf, estreado em 1993 – seguir-se-ia, em 2006, Quartett, de Heiner Müller. Na nova criação, estreada no Espace Cardin, em Paris, no mês passado, Huppert enfia-se na pele de Mary Stuart, rainha da Escócia, dando corpo a um retrato construído a partir das cartas que detalham “o seu envolvimento nalguns dos mais afamados enredos do seu tempo”. Na véspera da morte, Mary discursa sobre o seu último amor – e nunca é claro se as palavras que lhe saem são verdadeiras, falsas ou algo muito mais híbrido e complexo do que esses dois pobres conceitos. Sobre o espectáculo, escreve o Le Figaro tratar-se de “uma indesmentível perfeição”; o site Art Critique notou já também que “mais do que nunca ela [Huppert] é a rainha do teatro francês”.

Só que há, naturalmente, muito mais a acontecer entre 4 a 18 de Julho no Festival de Almada, cujo programa completo foi dado a conhecer esta sexta-feira. Desde logo, uma homenagem a Carlos Avilez, encenador, actor e fundador do histórico Teatro Experimental de Cascais (TEC). É toda uma vida dedicada ao teatro que será objecto da justa vénia em Almada (através de duas exposições concebidas por José Manuel Castanheira para o espaço da Escola D. António da Costa, o habitual centro nevrálgico do festival), celebrando um percurso iniciado em 1956, quando Avilez se estreou como actor profissional na Companhia Rey Colaço-Robles Monteiro, e que, mais tarde, faria do TEC um farol indispensável na cena artística portuguesa — pelos espectáculos inesquecíveis e ousados que afirmaram, em plena ditadura, uma possibilidade de renovação de uma cena teatral periférica, e pela criação da Escola Profissional de Teatro de Cascais, que tem formado numerosos intérpretes de vulto que ali dão os primeiros passos. Mas porque esta homenagem não olha somente para trás, Carlos Avilez apresenta, no âmbito do festival, O Sonho, de August Strindberg, no Teatro Mirita Casimiro, em Cascais, entre 5 e 18 de Julho (estendendo-se a carreira fora do festival até dia 28), com Ruy de Carvalho como protagonista.

São também essas (5 a 18) as datas escolhidas para a nova produção da casa, a Companhia de Teatro de Almada (CTA), que se lança no centenário do nascimento de Primo Levi para a primeira apresentação nacional num palco de teatro do clássico da literatura Se Isto É Um Homem — pungente testemunho de um sobrevivente do Holocausto que terá encenação de Rogério de Carvalho e interpretação de Cláudio da Silva. Outro destaque evidente do festival é aquele que junta no Teatro Municipal Joaquim Benite, a 7 e 8, as actrizes Bulle Ogier e Maria de Medeiros como protagonistas de um texto de Christine Angot, dirigido por Célie Pauthe, em que mãe e filha dialogam longamente em redor de uma situação de incesto que marca a vida de ambas: Um Amor Impossível.

Depois do sucesso do ano passado com O Quarto de Isabella, o belga Jan Lauwers regressa ao festival, a 6 e 7 com a adaptação do romance Guerra e Terebintina, de Stefan Hertmans, construído a partir de “um relato primorosamente documentado” da experiência da Primeira Guerra Mundial, registado pelo avô do autor num caderno de memórias. E, falando de regressos, não há como escapar à Joana d’Arc trazida por Juni Dahr (a encenadora norueguesa cujo Hedda Gabler foi em 2016 escolhido pelo público como Espectáculo de Honra e que no ano seguinte assumiu as conferências O Sentido dos Mestres). Baseando-se em escritos e em declarações de Joana d’Arc durante o julgamento a que foi sujeita, Dahr ergueu com John Morrow um espectáculo intimista que a própria criadora interpretará no Seminário de São Paulo, em Almada, de 15 a 17 de Julho.

Tal como aconteceu com Juni Dahr, o Festival de Almada volta este ano a desafiar o responsável pelo espectáculo eleito pelo público da edição anterior (Dr. Nest, dos alemães Familie Flöz, com nova apresentação a 14 de Julho, no palco da Escola) para ministrar uma série de masterclasses para profissionais de teatro no programa O Sentido dos Mestres. Caberá, assim, ao director artístico daquela companhia de marionetas, Hajo Schüler, apresentar cinco conferências sobre o trabalho dramatúrgico sobre a máscara.

Aumentar um “apoio escasso”

O arranque e o encerramento do Festival de Almada, como fez questão de notar na apresentação à imprensa da 36.ª edição a actriz e encenadora Teresa Gafeira (fazendo as vezes do director do evento e da CTA, Rodrigo Francisco, hospitalizado na sequência de um acidente de viação), ficarão a cargo de criações portuguesas. A Boda, de Brecht, numa encenação de Ricardo Aibéo, terá honras de abertura no Palco Grande da Escola D. António da Costa, juntando, em torno do texto do dramaturgo alemão, um elenco quase integralmente composto por actores e actrizes cujo percurso está profundamente ligado ao Teatro da Cornucópia. Brecht voltará, aliás, ao mesmo palco no dia 12, com a encenação de António Pires para Terror e Miséria no Terceiro Reich. O encerramento, a 18, está entregue a Feira dell’Arte, de Mário Botequilha, com direcção de Miguel Seabra.

A representação nacional é complementada ainda por Provisional Figures Great Yarmouth, o melhor espectáculo de teatro de 2018 para o Ípsilon, criado por Marco Martins (de 5 a 7 na Incrível Almadense); As Três Sozinhas, co-criação de Anabela Almeida, Cláudia Gaiolas e Sílvia Filipe em torno de figuras femininas que vão de Medeia a Lorena Bobbitt (5 a 14, Teatro Nacional); Lovers —​Vencedores, de Brian Friel, em encenação de Jorge Silva para o Teatro dos Aloés (9 e 11, Fórum Romeu Correia); Que Boa Ideia, Virmos para as Montanhas, de Guilherme Gomes, para o Teatro da Cidade (12 a 14, Teatro-Estúdio António Assunção); e Quinze Bailarinos e Um Tempo Incerto, coreografia de Rui Lopes Graça e João Penalva para a Companhia Nacional de Bailado (17 e 18, Teatro Joaquim Benite).

No campo da dança, o festival abre-se também a espectáculos de Hermes Gaido (dança, desporto e sexualidade em Uma Luta de Galos, dia 10, Escola D. António da Costa), Vero Cendoya, Patrice Thibaud e Jean-Marc Bihour, e Andréya Ouamba, convocando ainda clássicos reimaginados pelo espanhol Rafael Álvarez (a Antiguidade grega e a tragédia observada através de uma lenta de humor em Ésquilo, Nascimento e Morte da Tragédia, dia 8, no Palco Grande) e o italiano Alessandro Serra (que leva Macbeth para a Sardenha em Macbettu, 10 e 11, TNDMII). Questões candentes como os fluxos migratórios e a identidade de género surgem no programa através de País Clandestino, criado por autores e encenadores provenientes de Argentina, Brasil Espanha, França e Uruguai (15 e 17, Fórum Romeu Correia), e Estação Seca, espectáculo em que Phia Ménard problematiza em cena relações de poder ditadas pela genitália (13 e 14, Teatro Joaquim Benite).

A apresentação à imprensa na Casa da Cerca não terminou sem que, depois de Teresa Gafeira agradecer o voto de confiança de um público que adquiriu já 250 passes gerais antes de conhecer a programação deste ano, o director-geral das Artes, Américo Rodrigues, reconhecesse que o festival recebe um “apoio escasso em relação ao que merece”, deixando no ar a vontade de o dotar de um maior apoio financeiro nos próximos anos. Talvez a presença de Wilson e Huppert seja, afinal, o prenúncio do regresso da primeira linha do teatro europeu aos palcos de Almada.

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