Não podemos escapar à loucura. As máscaras da Familie Flöz no Festival de Almada

"Dr. Nest" é um espetáculo com máscaras, poesia e humor. Da Alemanha para o Palco Grande do festival, esta segunda-feira.

Maria João Caetano in Diário de Notícias, 15 jul 2018 notícia online

São todos iguais até que um veste a bata branca. E nesse momento sabemos exatamente que aquele que tem a bata é o médico. E já não são todos os iguais. Ou então. Não são iguais até ao ao momento em que a bata branca se transforma numa camisa-de-forças. E aí já não é possível saber quem era o médico e quem eram os pacientes. A loucura e a normalidade podem definir-se por uma simples peça de roupa?

Essa é a apenas uma das questões que ficam a pairar em nós quando vemos o espetáculo Dr. Nest, que a companhia alemã Familie Flöz apresenta esta segunda-feira no Festival de Teatro de Almada. Um espetáculo, como quase todos os desta “família”, onde o uso de máscaras se junta à poesia e ao humor de forma absolutamente irresistível.

O espetáculo estreou no final de março na agradável Halle Ostkreuz, uma sala pequena em Berlim. Os aplausos no final não deixaram margem para dúvidas. No dia seguinte, Hajo Schüler, um dos fundadores da companhia e o responsável pela criação das magníficas máscaras que os atores usam em cena, senta-se a uma mesa do Happy Baristas e bebe um café-duplo enquanto recorda como a história da Familie Flöz começou em 1994, quando Hajo Schüler e Michael Volger se encontraram na escola de teatro em Essen. “Fizemos juntos a apresentação final. Tinha apenas 15 minutos mas correu muito bem e decidimos continuar a trabalhar juntos”, conta.

Hajo Schüler queria fazer alguma coisa com máscaras e sem palavras e decidiram contar a história de uma família que vivia nos subterrâneos – uma história inspirada nas minas de carvão que havia ali em Essen. “Era uma espécie de homenagem a esses trabalhadores, muitos deles que tinham sido despedidos quando algumas minas fecharam”, explica. “Inventámos a história de uma família que vivia debaixo da terra e veio à superfície pela primeira vez. Era a família Flöz. E foi esse o nome que, oito anos depois, decidimos dar à nossa companhia. Para recordar esse primeiro espetáculo e porque éramos de facto uma família.”

A máscara é que manda

No início, as máscaras eram “muito simples”, conta Schüller. “A máscara era apenas um instrumento para o ator e que conferia algum humor à sua interpretação.” Mas, depois, as máscaras começaram a evoluir. Tornaram-se mais refinadas. Mais delicadas. Mais sociológicas até. É impressionante como uma máscara feita sobretudo com papier maché pode ser tão pormenorizada e expressiva. “Tem outras coisas mas a base é papier maché, podiam ser feitas por crianças da pré-primária”, diz Schüler, “o papier maché é um ótimo material porque é barato, muito moldável, e permite correções”.

O processo de criação começa sempre com os atores a trabalharem sem máscaras. “Os atores criam as personagens e fazem como que um rascunho. Colecionamos informações sobre estas personagens, a sua história, o seu corpo, idade, sexo, animais domésticos, profissão, tudo. Gravamos tudo em vídeo. É partindo disso, e sabendo qual o ator que a vai usar, que crio a máscara”, explica.

Isto significa que numa primeira fase é o ator que define a máscara. “A máscara é alimentada pelo ator.” Mas, depois, quando a máscara é introduzida no ensaio, começa uma nova fase. E tudo muda. “A partir desse momento é a máscara que manda, o ator tem de seguir o que a máscara pede.” Isto não só determina o trabalho do ator como vai alterar a relação com o público – deixa de ser uma relação de um para um e passa a ser triangular.

Hajo Schüler explica o complexo proceso: “A máscara não mente. Uma máscara funciona como uma lente, um foco. Quando não se tem a expressão do rosto ou a voz para transmitir aquilo que se quer transmitir, a atenção passa toda para o corpo. E é isso que o ator tem de controlar, a linguagem do corpo. Tem de estar tudo lá, no modo como cada personagem se movimenta. Por exemplo, só estar sentado numa cadeira sem fazer nada – temos de olhar e saber a história daquela pessoa pelo modo como está sentado. Tem de ser muito sincero. Não se pode fingir. Tem de se estar mesmo lá, na personagem.”

Em Dr. Nest, cinco atores interpretam 17 personagens. Estão constantemente a mudar. “Não é complicado”, garante o encenador. “Assim que coloca a máscara, o ator entra noutra personagem.” O mais difícil é mesmo a logística. Não há backstage nem apoios ao palco, os atores têm de se despir e vestir sozinhos, mudar o cenário e os adereços. “É uma grande responsabilidade e muitas coisas podem correr mal. Está tudo planeado ao milímetro. Os figurinos têm de estar preparados, quando os tiram não podem atirá-los para lá porque sabem que a seguir vão precisar deles.”

O que é a loucura e o que é a normalidade?

Para criar Dr. Nest, a Familie Flöz inspirou-se nas memórias de Björn Leese, um dos atores da companhia, que cresceu numa vila onde foi desenvolvido um projeto-piloto de integração de doentes com problemas mentais. As famílias tinham a seu cargo um doente, que convivia com pessoas saudáveis. A história nasceu a partir dessas memórias, da leitura dos livros de Oliver Sacks, Michel Foucault e de outros autores, e até recorrendo ao imaginário de filmes como Voando Sobre um Ninho de Cucos, de Milos Forman. “Não é fácil trabalhar sobre este tema da doença mental porque por um lado trabalhamos sobre aquilo que é o humano, mas por outro lado podemos cair na armadilha de usar o seu lado mais exótico – não queríamos fazer um circo, como se fazia dantes, um freak show. Porque, de facto, há um fascínio pelas pessoas diferentes e esta era uma ideia que nos deixava curiosos. Mas a máscara permitiu-nos trabalhar isso de uma forma poética e ao mesmo tempo com humor, como gostamos de fazer.”

No palco, acompanhamos o Dr. Nest, um médico que vai trabalhar para um hospício e que em vez de usar terapias como os tradicionais choques elétricos procura aproximar-se dos seus doentes, comunicar com eles, estabelecer uma relação. “Na verdade, este é um espetáculo sobre a empatia”, explica o encenador. “É algo fascinante para mim. Todos aqueles que vivem um amor ou querem ter uma relação com o outro correm esse risco, quando estamos mesmo interessados em perceber o outro – até onde podemos ir, na nossa procura por criar empatia, sem nos perdermos a nós mesmos?”

Para Dr. Nest é difícil é perceber onde parar. Gradualmente, as atitudes consideradas “anormais” vão-se tornando cada vez mais normais para ele. Até que se torna impossível dizer quem é louco e quem é são. E essa é outra das questões que está muito presente no espetáculo: afinal, o que é a normalidade? E quem a determina?. “Não queríamos fazer nada muito político, mas a verdade é que não o conseguimos impedir. A bata branca é um símbolo. É uma decisão que tomamos – quem é que tem o poder, quem tem a chave e fecha a porta, e porquê.”

As criações da Familie Flöz são de tal forma perfeitas que aos poucos vamo-nos esquecendo que os atores têm máscaras. Aqueles rostos, que ao princípio parecem tão absurdos, tornam-se familiares. Sabemos imediatamente identificar cada personagem e qual o seu espírito. Não falam, não sorriem, não fazem esgares. E, no entanto, dizem-nos tudo o que precisamos saber e até nos emocionam e fazem sorrir.

Dr. Nest
Familie Flöz (Alemanha)
Palco Grande – Escola D. António da Costa, Almada
Segunda-feira (dia 16) às 22.00
Bilhetes: 5 a 17 euros

* A jornalista viajou a Berlim a convite do Festival de Teatro de Almada

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