Não há medo, só vontade de teatro no Festival de Almada

Até domingo, o mais importante evento do calendário teatral do Verão continua a mostrar que é possível convocar o público e apresentar uma programação regular em plena pandemia. Do lado dos espectadores, soa um coro de fidelidade e compromisso.

in Público 23 Julho 2020 | notícia online

A autorização para desconfinar que em finais de Maio passou a incluir as salas de teatro, limitadas a 50% da lotação e com os espectadores obrigados a usar máscara, foi o sinal esperado em Almada para concluir o plano que vinha sendo preparado nos bastidores: avançar com a 37.ª edição do mais importante festival do calendário teatral português. A menos que as medidas de emergência se prolongassem no tempo, era uma decisão que estava já tomada, após uma consulta telefónica, em meados de Abril, ao público fiel do evento, que devolveu a Rodrigo Francisco, director do festival e da Companhia de Teatro de Almada (CTA), a clara confirmação de que a vontade de voltar às salas eclipsava quaisquer receios de contágio – desde que cumpridas as medidas de segurança, naturalmente.

Assim foi, por exemplo, com Natália Alves, residente na Amora que só aos 61 anos se fez espectadora regular do Festival de Almada. Embora tivesse frequentado edições anteriores, só este ano, em resposta ao contexto pandémico, sentiu a urgência absoluta de voltar a entrar numa sala de teatro. “Quando chegou o anúncio, fiquei cheia de medo de que os bilhetes desaparecessem e no dia seguinte vim logo comprar a assinatura, à cautela”, explica. O mesmo se passou com muitos dos espectadores que o PÚBLICO encontrou no Teatro Municipal Joaquim Benite, a meio desta 37.ª edição que ainda decorre, antes e depois de uma sessão de Mártir, produção da CTA em cena até domingo, dia 26, o último do festival.

As circunstâncias excepcionais em que acontece a presente edição levaram a que o festival apostasse numa maioria de espectáculos portugueses – quase todos já estreados, como Mártir –, agilizando a possibilidade de avançar nas datas habituais e concretizando um muito necessário apoio às companhias e aos artistas nacionais em tempos de crise profunda num sector por demais precário. Essa condição acaba por ser, na verdade, um dos grandes atractivos para alguém como o crítico de teatro catalão Joaquim Armengol Roura, frequentador do Festival de Almada há dez anos, que se mostra “encantado” com a possibilidade de, por estes dias, poder descobrir mais criadores nacionais. Para Roura, colaborador da revista Proscenium e do jornal ARA, a decisão de fazer a mala e pôr-se a caminho de Almada nunca foi tão fácil quanto este ano. “Sabia que teria de estar aqui”, diz ao PÚBLICO. “É o ano mais difícil para eles [Companhia de Teatro de Almada, organizadora do festival], tinha de comparecer e de ajudar no que fosse possível. Tal como os restantes espectadores.”

Assim acontece também com Mariana Sardinha e Afonso Molinar, jovens actores, ele espectador habitual do Festival de Almada, ela em estreia absoluta, ambos munidos de assinaturas (pela primeira vez) para não perderem uma única peça. “Foram três meses de seca”, justifica Afonso, pelo que “havia uma grande necessidade” de voltarem a entrar numa sala, e mais ainda quando um dos poucos festivais europeus que não cancelou a sua programação anual estava aqui mesmo à mão de semear. O fascínio da experiência, para Mariana, “é não conseguir ver a meta, porque depois de uma peça vem outra e ainda outra”. “Gosto de manter sempre esta perspectiva de que amanhã há mais.”

PÚBLICO - A distância de segurança e a rarefacção do convívio e da discussão pós-espectáculo marcarão definitivamente a edição 2020 do Festival de AlmadaPÚBLICO - A distância de segurança e a rarefacção do convívio e da discussão pós-espectáculo marcarão definitivamente a edição 2020 do Festival de AlmadaPÚBLICO - A distância de segurança e a rarefacção do convívio e da discussão pós-espectáculo marcarão definitivamente a edição 2020 do Festival de AlmadaPÚBLICO - A distância de segurança e a rarefacção do convívio e da discussão pós-espectáculo marcarão definitivamente a edição 2020 do Festival de Almada

Apesar de admitirem que o calor não lhes facilita a vida quando se vêem obrigados a usar máscara no interior das salas, Afonso e Mariana aceitam esse desconforto como a moeda de troca necessária para acederem a uma sessão e poderem colocar-se diante de uma programação regular de teatro. “Se não fosse a máscara, a vida continuava normal e nem me lembrava de que estamos numa pandemia. Até porque já temos estes novos hábitos de higiene tão enraizados que não sinto que exista qualquer tensão ou medo entre o público”, admite Mariana.

“É possível”

A habituação é também uma conquista para quem pisa o palco. Vicente Wallenstein divide o protagonismo de Mártir com Ana Cris, cabendo-lhe encarnar o estudante que descobre a religião cristã e no seu processo de radicalização entra em choque com a professora que leva a educação sexual para dentro da sala de aula. Venceu a estranheza do primeiro impacto de representar para a lotada sala experimental do Teatro Municipal Joaquim Benite, agora reduzida a metade, ao bater com os olhos em “caras tapadas e quase irreconhecíveis devido às máscaras”. “Depois, com a repetição, essa sensação acaba por se desvanecer e torna-se algo natural”, diz. “Neste momento já me é quase igual, como se já fizéssemos espectáculos nestas condições há muito tempo; por outro lado, há a sensação de estarmos a proporcionar um momento único nesta altura.”

E acaba por ser, de facto, uma raridade, tal como o público tem partilhado com o actor depois dos espectáculos. Afinal, numa altura em que a proximidade entre desconhecidos alimenta amiúde a suspeição em relação aos outros, “o teatro é dos poucos sítios onde vemos pessoas que não casais ou familiares a manterem esse contacto, a tocarem-se”, refere Vicente Wallenstein.

Na verdade, a possibilidade do reencontro, cumprindo as distâncias impostas pelas regras da Direcção-Geral de Saúde, é também um dos chamarizes evidentes nesta edição do Festival de Almada. Sónia Pires Silva, 43 anos, antropóloga e frequentadora do teatro almadense durante todo o ano, recorda a “energia muito forte” que sentiu na estreia de Bruscamente no Verão Passado, a encenação de Carlos Avilez para o Teatro Experimental de Cascais que abriu o festival deste ano. Estar na sala, “olhos nos olhos” com os outros espectadores e com os actores, “não tem nada que ver com estar em casa em frente à televisão ou a ouvir rádio”, compara. Aquilo que talvez lhe custe mais nas presentes circunstâncias, admite Sónia Pires Silva, é ver o público a ser convidado a sair, “com delicadeza”, após cada sessão. O ritual social da discussão daquilo a que assistiu tem forçosamente de passar para o exterior, para qualquer estabelecimento que esteja ainda de portas abertas e permita prolongar a experiência teatral para lá da sala.

A fidelidade agora reiterada do público de Almada, que fez questão de esgotar as sessões do festival, assim como o ambiente de normalidade entre os actores em palco – não se privando do toque, não comprometendo as suas intenções artísticas – foram de resto os aspectos destacados na quarta-feira passada por Javier Vallejo, crítico do El País, numa mesa-redonda com representantes espanhóis e sul-americanos para a Association for Hispanic Classical Theatre. O festival português foi apontado um exemplo de que é possível continuar a fazer teatro sem concessões e sem comprometer a segurança.

Para o espectador que também é Joaquim Armengol Roura, o regresso às salas deu-se em Almada, antes sequer de o fazer em Espanha. Elogia a coragem que o festival mostrou ao avançar para uma edição numa altura em que se vivem ainda tempos de excepção, de adaptação a uma realidade incerta, e a todo o momento medidas mais restritivas de confinamento podem ser colocadas de novo em cima da mesa.

Para Vicente Wallenstein, a decisão de não suspender o Festival de Almada funcionou também como uma das primeiras e mais cabais respostas à pergunta que ocupou a sua cabeça – e a de muitos colegas – nos últimos meses: “Quando é que vai ser possível fazermos espectáculos outra vez?”. “Há limitações nas condições, há menos gente a ver, há menos bilhetes vendidos, há muitas normas que são complicadas de seguir”, reconhece, “mas é possível fazer”. E não só é possível como este Festival de Almada mostrou ao actor que não são apenas os artistas que querem continuar e se prestam a arranjar formas de voltar aos palcos. O público também quer estar presente. “Isso é muito tocante”, reconhece. Por isso, quando os aplausos no final de Mártir, numa pequena sala experimental que já em condições normais comporta um número modesto de espectadores, parecem não preencher por inteiro o espaço, a verdade é que sublinham, talvez como nunca antes, cada presença na sala. Porque aquilo que se escuta não é o som dos lugares vazios, mas o som da resistência e do compromisso num espelho entre público e actores.

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