Murros no ar, ou de como o feminicídio chegou ao Festival de Almada

Rebota Rebota y en tu Cara Explota, dos espanhóis Agnès Mateus e Quim Tarrida, começa por fazer rir. Mas é um riso cada vez mais culpado e mais amarelo, que acaba por dar lugar a um doloroso confronto com a realidade da violência sobre as mulheres.

Rui Monteiro in Público 25 Julho 2020 | notícia online

Primeiro chegam as piadas machistas. A seguir, aquelas bocas que as mulheres ouvem por tudo e por nada quando passam na rua. Depois – narrado como um “destino” próprio de fado marialva – vem o papel da mulher na cultura popular, das princesas dos filmes da Disney às séries de televisão, passando pelo que se conta às crianças antes de adormecerem. É um fartote de riso. Porém…

Este riso, que Agnès Mateus interpreta com uma energia contagiante, apoiada em música electrónica pop embrulhada numa girândola de luz, começa espontâneo. Contudo, aos poucos, vai-se tornando um riso – como dizer? – culpado, cada vez mais amarelo e contido. Ainda se ri, aqui e ali, mas mesmo quem não sabe ao que vai já percebeu, muito antes do meio da peça, longe de prever a catarse simbólica final, sem antecipar como isto tudo vai acabar mal, que estas graças estão carregadas de cinismo.

São nuvens negras que toldam o horizonte, alimentadas por uma ironia radical nascida da indignação, passo a passo tornando mais claro o seu objectivo, o texto (que Agnès Mateus escreveu com Quim Tarrida) mostrando ao que vem. E ao que vem é a uma dolorosa reflexão sobre o feminicídio em Espanha (ou em Portugal, ou no Brasil, ou na China, ou…), destilada por uma representação frenética, dedicada, repleta de frases cortantes e certeiras; todavia, na sua urgência de intervir, também demasiado povoada por efeitos cénicos fáceis que a serenidade crua dos vídeos escolhidos para as mudanças de cena (como o ponto de vista de um assassino registando o seu crime) não compensa completamente.

Mateus e Tarrida não vão longe de mais na sua agressiva acusação do carácter sistémico da cultura patriarcal onde se abriga o feminicídio, nem exageram quando aplicam o escalpe ao corpo e revelam as suas manhas. Talvez devessem ir mais fundo, pois Rebota Rebota y en tu Cara Explota, segunda obra criada em conjunto, não é completamente eficaz na sua denúncia. É uma espécie de tempestade que varre em todas as direcções e que não perdoa a permissividade da sociedade, sem dúvida; uma peça que aponta o cutelo aos responsáveis, que enumera casos numa lista fúnebre e pungente capaz só por si de verificar e afirmar o que devia ser óbvio. E é, também, um pugilista cego de raiva e desespero disparando murros, sabendo que nem todos vão acertar mas que são necessários para manter o espectáculo vivo, mesmo como uma forma de agitação e propaganda incapaz de tocar os não convertidos.

mostrar mais
Back to top button