Mudam-se os tempos, muda-se o Turismo

A peça de Tiago Correia que esteve no epicentro das acusações de censura ao Teatro Municipal do Porto encerrou o Festival de Almada. Seis meses depois da estreia e uma pandemia depois, as suas fragilidades cénicas são mais indisfarçáveis.

Rui Monteiro in Público 31 Julho 2020 | notícia online

Em Janeiro, os turistas eram uma praga. Seis meses depois da estreia desta produção da companhia A Turma, com a praga covid-19 pelo meio, e quando a peça encerra o Festival de Almada, o regresso dos turistas é sonho de autarcas, de governos que disputam “corredores sanitários”, e principalmente dos que viviam deles e das suas compras e dos seus passeios e dos seus alugueres de curta duração e alto rendimento. Turismo não perdeu o seu sentido com os efeitos da pandemia na vida das cidades. Continua um espectáculo de intervenção sobre a realidade, mas a realidade é outra e as circunstâncias deixaram mais à vista as suas fragilidades cénicas.

Na peça que Tiago Correia (n. 1987) escreveu e encena, encontra-se uma rapariga que vive na zona histórica da cidade e que, embora deseje ser actriz, porque a renda e a comida têm o seu preço, desviou-se do trajecto e agora entretém turistas vendendo-lhes bugigangas, mostrando-lhes as vistas, alugando-lhes o apartamento clandestinamente, aqui e ali para eles cozinhando jantares típicos. Tem por senhorio um polícia, melhor, a mãe dele, habitante do nevoeiro da doença de Alzheimer, par com os seus próprios problemas, atirado para os subúrbios na esperança de rendibilizar a casa no centro e superar as despesas. A este grupo de vítimas junta-se uma sem-abrigo, espécie de oráculo que vai dizendo as verdades de que ninguém quer saber, um turista francês que, afinal, é um fotógrafo traumatizado pelo que viu no Mediterrâneo, e, claro, um empreendedor cheio de lábia no papel de vilão, apesar de, ao olhar do texto, não haver por aqui bons nem maus.

Por detrás dos panos (e há muitos na cenografia de Ana Gormicho) do enredo, já se percebeu, principalmente se pensarmos que ainda é Janeiro, está a gentrificação das cidades na forma em que ela se apresentou ao autor depois de pesquisas realizadas, em 2017, no Porto, em Loulé e em Barcelona, as quais, como em Lisboa ou em Veneza, por assim dizer verificam como o turismo apressou a “pressão imobiliária”, expulsou os habitantes pobres, substituiu a barbearia do senhor João pelo Starbucks, ou fez da loja de tecidos da dona Judite uma mercearia biológica. Foi um tempo em que palavras como trólei e Airbnb, ou voos low cost, significavam cidades em vias de transição para o parque de diversões, evidentemente eco-friendly, desenvolvidas por empreendedores espevitados incentivados por presidentes de câmara que confundiam cosmopolitismo com ocupação do espaço público, isto é, encurtando e simplificando, descaracterização dos lugares deixando os locais encurralados.

Embora Fernando Medina continue a colorir o asfalto das ruas, o tempo mudou e já mal se ouvem os tuk-tuk. Os turistas voltarão, decerto. Não se sabe é quando, nem como, nem quantos. Sabe-se que não será da mesma maneira e espera-se por uma vacina antes de o mundo como o conhecíamos desaparecer sem garantia de daí nascer algo melhor. Ora, isto altera consideravelmente a maneira como se vê Turismo, agora, meio ano depois da estreia (e da polémica das acusações de censura ao Teatro Municipal do Porto). Fornece algum alimento ao pensamento e boa dose de possibilidades de teorização sobre o futuro das cidades que no interim caíram de borco. Mais do que tudo, mostra as inúmeras fragilidades do original.

O busílis começa no texto, demasiado carregado de lugares-comuns, cheio de frases feitas, que, com o uso, já em Janeiro, não tinham qualquer efeito, e incapaz de criar personagens consistentes para além do estereótipo; prolonga-se por uma encenação habilidosa mas ineficaz a que a utilização de vídeo em tempo real nada acrescenta; encerra-se numa interpretação (André Júlio Teixeira, Cláudia Lázaro, Inês Curado, José Eduardo Silva, Paulo Lages e Romi Soares) frouxa, talvez consequência de má direcção dos actores e de um elenco particularmente desequilibrado. O que, no fundo, faz ainda mais mossa a Turismo do que a mudança dos tempos.

fonte
Rui Monteiro 'in' Público 31 Julho 2020
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