Maria João Luís: “Sou de uma família de mulheres duras de Alhandra e a minha Mãe Coragem tem muito delas”

Cresceu em Alhandra, fez-se atriz em Lisboa, n’A Barraca, onde começou, e hoje tem a sua própria companhia, o Teatro da Terra, no Seixal. Maria João Luís continua a ser um bocadinho a “miúda do CIDAC”, cheia do entusiasmo que a faz estar de segunda a sábado, nas ruínas do Carmo, a interpretar Anna Fierling, a “Mãe Coragem” de Bertolt Brecht, em cena até 17 de agosto.

Catarina Pires in Mensagem 09 Agosto 2024 | notícia online

Maria João Luís não saiu da personagem desde que estreou a Mãe Coragem, a 8 de junho, no Centro Cultural de Belém. Ali, é Anna Fierling, uma mulher dura e seca, uma sobrevivente, cruel e terna, abutre e leoa. O papel levou-a ao Festival de Almada, nos dias 17 e 18 de julho, e está em cena desde 24 de julho e até 17 de agosto, todas as noites, exceto ao domingo, nas ruínas do Carmo, em Lisboa.

Duas horas e meia de espetáculo que exigem o mergulho absoluto na personagem que construiu muito a partir das mulheres da infância, no campo, em Alhandra – a mãe, as tias, gente pragmática, forjada num tempo em que nada era fácil. Também as cheias de 1967 que marcaram a família dela são já uma memória resgatada numa outra peça de teatro, Ermelinda do rio, mas a que hoje, neste dia em que conversamos, prefere não voltar.

Lembra-se antes de no 25 de Abril de 1974, com dez anos, estar internada no hospital com uma doença grave e, no entanto, sentir uma alegria imensa e desenhar e cantar para os médicos e enfermeiros que lhe fizeram uma festa quando ela saiu. Maria João Luís já podia cantar à vontade o Bairro Negro, do Zeca Afonso, e todas as canções que ouvia em casa, sem que uma professora lhe tirasse o microfone ou os pais ficassem com medo do que isso poderia acarretar.

Essa miúda que desenhava e cantava e depois declamava poesia no Chiado, com um alguidar cheio de água aos pés que dizia “Poço dos Desejos”, continua vivíssima nos olhos da Maria João, mesmo quando absortos na Anna Fierling, do Brecht.

Qual o significado de representar a Mãe Coragem nas ruínas do Carmo, em Lisboa, nos 50 anos do 25 de Abril e no tempo que estamos a viver em Portugal e no mundo?

Imenso. Nós estreámos o espetáculo no CCB, levámos o espetáculo a Almada, ao Festival de Almada, e agora estamos nas ruínas do Carmo, que é um cenário incrível para se fazer este espetáculo, que fala da guerra. E nós sabemos que ligados à guerra estão sempre os edifícios destruídos, uma paisagem desgraçada, destroçada, miserável. Fazer a Mãe Coragem hoje é um desafio. A peça [de Bertolt Brecht] data de 1940, por aí, e tudo o que ele diz se encaixa perfeitamente com aquilo que está a passar-se hoje. A guerra não acaba, não acaba. Não interessa que a guerra acabe.

Não interessa a ninguém, nem à Anna Fierling (a Mãe Coragem).

Não, a guerra tem de continuar. Esta mulher, a Mãe Coragem, vive da guerra. Não é propriamente uma heroína, é uma mulher seca, dura, cuja sobrevivência depende da guerra. Anda a vender ligaduras, assalta os mortos, é assim que ela sobrevive. Portanto, é uma personagem, eu diria, não muito positiva, mas, por outro lado, extremamente humana, de uma humanidade enorme e de um amor pelos filhos… toda aquela coisa por detrás da sua secura e da sua dureza. A gente sabe que a guerra efetivamente tem é intervalos, tem uns intervalos em que há paz e depois é preciso, como diz o Brecht, desenrascar a guerra. É preciso criar, outra vez, a guerra.

A quem é que interessa?

Há muitos interesses envolvidos, há o comércio das armas que é um dos maiores negócios do mundo e depois há uma outra coisa que nunca me tinha ocorrido e que agora de repente percebo: a reconstrução. É outro grande negócio.

Em Gaza, já se está a preparar a reconstrução. É outro enorme negócio. E é por isso que a guerra não acaba, porque há muitos interesses envolvidos, é sobre isso a Mãe Coragem. Ela é, efetivamente, uma hiena do campo de batalha.

Costumas dizer que um dos papéis do ator é pôr um espelho à frente das pessoas e mostrar-lhes o que são. Que imagem é que a Mãe Coragem nos devolve? O que é que ela nos faz ver?

Faz-nos ver isto tudo e faz-nos ver que a miséria, a miséria humana, encontra nestas guerras, na destruição, uma forma de sobreviver. É pura sobrevivência. É isso que ela nos faz ver. Quando estás no limite, és capaz do pior para sobreviver.

Eu imagino, em Gaza, a falta de água, por exemplo. As pessoas quase matam por um bocado de água, estás a perceber? E isto é transversal ao ser humano.

E não há redenção?

Não há redenção, não me parece.

O Teatro da Terra, companhia fundada por Maria João Luís há 15 anos, está sediada no concelho do Seixal há quatro. Foto: Líbia Florentino

Estás no Carmo com a Mãe Coragem e o Carmo é mesmo ao lado do Chiado onde começaste a dizer poemas na rua, quando eras miúda. Como é que te deu para isso?

Para ir para a rua dizer poemas? Nós éramos artistas. Eu andava na António Arroio, que era uma escola de artes, fazia-se muita performance, fazia-se muita coisa à volta da pintura, havia exposições de pintura onde eu dizia poesia, por exemplo. Era uma escola muito ativa, nas artes performativas também, e era uma forma de fazer algum dinheiro. Eu levava um alguidar…

Eras otimista.

Não, com água, e chamava-lhe “O Poço dos Desejos”. E as pessoas punham lá moedas. Éramos muito livres, havia uma liberdade enorme, que eu tenho muita pena que os adolescentes hoje já não sintam.

Nós íamos para a praia, cantávamos na praia, fazíamos fogueiras. Hoje é proibido. Como é que podem tirar aos adolescentes o prazer de estar a cantar no meio da areia, a ver o mar à noite, todos juntos? Tiraram isso aos adolescentes, é uma pena, os meus filhos já não viveram isso. Dormir na praia, acordar de manhã com as ondas a baterem, aquele cenário.

Isso foi quanto tempo depois do 25 de Abril?

Eu diria, aos meus 15, 16 anos, portanto início dos anos 1980, já a gente se encontrava todos nas praias e acampávamos.

E no 25 de Abril tinhas 10 anos: como é que viveste esse período? Nessa altura, vivias em Vila Franca, não é?

Vivia em Alhandra. Foi uma coisa extraordinária. Marcou-me completamente. A sensação de que era tudo possível, a liberdade.

Ainda me lembro, antes do 25 de Abril, por exemplo, de me avisarem que eu não podia cantar na rua as músicas que ouvia em casa. Uma vez, numa excursão da escola, cantei o Bairro Negro, do Zeca Afonso, e a professora tirou-me o microfone. Quando cheguei a casa, em pranto, a dizer que não me deixaram cantar, a minha família ficou assustadíssima. ‘Então tu foste cantar isso?’ Ficaram em pânico. Durante semanas, a minha mãe ia sempre ver se havia passos na escada, ia sempre ver quem é que vinha lá.

Maria João Luís diz que a vida como atriz germinou nos dias em que ia ler poemas para a rua. Foto: Líbia Florentino

Nessa altura, Lisboa e Alhandra eram mais “distantes” do que são hoje?

Ah, sim, raramente vínhamos a Lisboa. De vez em quando o meu irmão vinha ao Apolo 70 e trazia-me e lá me pagava um gelado. Mas eu adorava vir a Lisboa. E descobrir Lisboa, com os meus 15 anos, quando vim para a António Arroio, foi uma coisa extraordinária. Era uma escola muito à frente.

E como é que a mulher Maria João Luís se descobriu atriz?

Foi isso, comecei por dizer poesia na rua. Eu lia bastante, gostava muito dos surrealistas, dos poetas franceses, do [André] Breton, dessa gente. E então eu lia essas poesias. E lia muito o Herberto Helder. Adorava Os Passos em Volta, adorava aquele livro, ainda hoje, para mim, é das melhores coisas que já li. E uma vez disse-o ao Herberto, encontrei-o num café, tinha os meus 16 anos para aí, e cheguei ao pé dele e disse-lhe, “olhe, eu ando a ler as suas coisas na rua”. E ele achou imensa piada. Nós tínhamos um amigo comum, eu ia ter a esse café com esse amigo, e então ele estava lá e eu disse e ele ficou contente que eu dissesse a poesia dele na rua.

E como é que dás o salto daí para o teatro?

Foi muito natural. Eu tinha um namorado que fazia parte do CIDAC [Centro De Intervenção Para O Desenvolvimento Amílcar Cabral], da CDPM, a Comissão dos Direitos do Povo Maubere. Ele tinha estado em Timor e tinha uma relação muito grande com o CIDAC e com a ajuda toda que eles davam aos refugiados e eu também, como voluntária, fui trabalhando no CIDAC e eles organizavam muitos concertos, muitas coisas. Ainda cheguei a dizer poesia, num ou noutro. E foi assim que eu me cruzei com a Maria de Céu Guerra e com outros artistas. E então começou a haver uma graça n’A Barraca que era: “Se te portas mal, vem a miúda do CIDAC”.

Porque não paravas quieta e querias fazer tudo.

Pois. Até que, um dia, fizeram um teste para um papel e alguém disse: “eh pá, já agora chama-se a miúda do CIDAC também”. E eu fui fazer esse teste e fiquei imediatamente. Portanto, comecei a fazer teatro n’A Barraca, tinha os meus 19 anos.

E nunca mais paraste.

Estive n’A Barraca uns sete anos e depois começaram a surgir convites de outros lados e eu tinha curiosidade em conhecer outros encenadores e ver como é que se trabalhava noutras companhias. Nunca por me sentir mal n’A Barraca, pelo contrário, era muito bem tratada, mas fui à vida e nunca mais parei.

Atriz de teatro e rosto conhecido da televisão, graças à participação em telenovelas e séries, Maria João Luís começou no teatro A Barraca, com Maria do Céu Guerra. Antes disso, quando era estudante da António Arroio, dizia poesia na rua, no Chiado. Foto: Líbia Florentino

Tens uma carreira cheíssima entre a televisão e o teatro, sobretudo o teatro. Como é que surge a necessidade de criar uma companhia tua, o Teatro da Terra?

Eu sempre fui muito ligada à terra, sempre tive jardim, hortas, os meus tios também tinham, eu adorava e adoro o campo e pensámos… nós tínhamos comprado um monte em Ponte de Sor, na Ribeira das Vinhas, e havia um teatro, que estava quase vazio, não tinha muita atividade. E eu falei com o Pedro [o marido] e disse: ‘e se nós propuséssemos aqui um projeto? Mudávamo-nos para cá e fazíamos um projeto com a comunidade’. Falei com o Presidente da Câmara e o homem disse logo que sim. Portanto, investimos depois em recuperar a casa, que estava quase em ruína, e fomos viver para lá.

Estiveram lá dez anos.

Há quanto tempo estão cá?

Há quatro anos.

E este território como é que é?

Tem pano para mangas. Pode fazer-se muita coisa aqui. Assim que chegámos, desenvolvemos trabalho com a comunidade. Eu tento sempre nos espetáculos contar com atores do Seixal. Agora, tenho muitas propostas para fazer trabalho com a comunidade, com as orquestras ligeiras, com as companhias seniores, portanto, no próximo ano vou estar muito investida nesse tipo de trabalho, que para mim é sempre muito prazeroso. Embora tenha sempre que apresentar três espetáculos por ano à DGArtes e me sobre muito pouco tempo para poder fazer esse trabalho comunitário. Mas vou tentar, este ano que vem, debruçar-me mesmo sobre isso.

O que é que te inspira nesta região?

Tudo. Para já, a quantidade de gentes diferentes que habitam este território, a forma como estão e são integrados pela própria comunidade do Seixal. Tudo isso é muito gratificante, é uma coisa muito bonita. Depois, toda a atividade cultural que a Câmara do Seixal tem. Não param, estão sempre a promover ações, estão sempre a fazer coisas. E isso é desafiante também, para mim, também me inspira.

E Alhandra, nunca voltaste à tua terra depois de teres saído quando eras miúda?

Voltei lá para fazer espetáculos, ainda com a autarquia. Fiz um trabalho também com a comunidade, a partir de um texto do Carlos Oliveira, o Finisterra, mas voltar lá é muito difícil, eu tenho uma vida muito ocupada, estou sempre a fazer coisas, tenho os filhos ainda, em casa. Portanto, é difícil.

Além do teu Teatro da Terra, vais trabalhando com outras companhias de teatro, em Lisboa. A Mãe Coragem é uma produção do Teatro do Bairro.

Sim, tenho sempre um pezinho fora. Já fiz várias coisas com eles, gosto imenso do trabalho do António Pires, que é um encenador virtuoso, muito inteligente, muito boa pessoa e senhor de uma muito boa disposição. A gargalhada dele é única. Tenho uma paixão grande por ele. Gosto muito dele e gosto imenso de trabalhar com ele. Este projeto teve um mês e meio para ser feito. Foi muito pouco tempo. Sobretudo para decorar o texto, que é enorme. Foi para mim muito difícil, muito desafiante. Mas pronto, penso que fiz o melhor que pude.

Como é que a Maria João Luís se aguenta, de segunda a sábado, durante duas horas e meia, na pele de uma personagem tão exigente?

Cansadíssima, sobretudo porque há uma espécie de concentração que tem de se manter todo o dia para não se perder o fio à meada, para se chegar à noite segura daquilo que se vai fazer. De maneira que eu nunca desligo completamente, estou sempre ligada ao espetáculo, desde que acordo. Sobretudo o texto, tem de estar tudo presente. Onde eu ia falhando, tenho de corrigir durante o dia, tenho de lá ir e repetir, para ter a certeza que não volta a acontecer. Há um trabalho contínuo quase.

Sou de uma família de mulheres duras, mas ao mesmo tempo extremamente humanas. Fui beber às minhas tias, à minha mãe, a personalidade da Anna Fierling”, diz Maria João Luís, em cena todos os dias, exceto ao domingo na pele da “Mãe Coragem”. Foto: Jaime Freitas/Teatro do Bairro.

E as ruínas do Carmo… Depois do CCB e do Teatro de Almada, as ruínas deve ser outra dimensão.

Lá está, tem o cenário da ruína. É como se fosse um espetáculo na rua. Nós estamos a fazer aquilo na rua. Portanto, tem imenso barulho de fora. Malta a cantar. Tem uma série de imprevistos. Mas sim, o cenário é inspirador, o espetáculo fica lindo nas ruinas. Vão ver se ainda puderem, até dia 17 de agosto está em cena, às 21h30, de segunda a sábado.

Se puderem ir ver, vão, porque é um belo espetáculo. Eu optei por fazer a personagem pelo seu lado mais duro.

Porquê?

Sou de uma família de mulheres duras, algo secas, também, pessoal do campo, pessoal muito concreto, mas ao mesmo tempo extremamente humanas também. Fui beber às minhas tias, à minha mãe, a personalidade da Anna Fierling. E eu penso que, de certa forma, é isso que está no texto. É isso que lá está. É isso que o Brecht escreveu. É uma mulher assim. Ele próprio dizia que não era para empatizarmos com a Mãe Coragem e que um dos grandes problemas dele era o público empatizar com a personagem. Mas o que é facto é que o público empatiza com ela e chora com a dor dela, o que é incrível.

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