Koltès e Pirandello em Almada

Duas interrogações ao real no início do incontornável Festival de Almada. No Trindade, Jacques Nichet (Théâtre National de Toulouse) encenou Koltès.

Nesta sua peça, quatro excluídos (dois brancos, um novo e um velho, a noiva do velho, recém-chegada de Paris, e um negro) cruzar-se-ão, durante uma noite, num dormitório para trabalhadores duma grande obra de engenharia algures em África, porque o negro reclama o corpo dum companheiro morto em circunstâncias misteriosas. Devolveu-se este horizonte trágico (estrutura teatral e interrogação ao destino) numa rigorosa oposição de planos significativos: à intensa sonoplastia e à iluminação lúgubre (inquietação da noite) contrapôs-se um alucinante ritmo da elocução que, ironicamente, sublinhou o lado patético das personagens (Chattot é deslumbrante neste jogo de desconstrução). Menos ambíguo que Koltès, Nichet focalizou através do negro, que faz surgir da plateia, a necessidade (que já fora de Antígona) de repor a ordem. E entre uma contínua chuva de pétalas (a promessa) e o fogo de artifício final (fátuo como a linguagem dos brancos), inscreveu brilhantemente uma interrogação à validade do acto teatral.

Dias antes, no CCB, o jovem e aclamado encenador Emmanuel Demarcy-Mota (Théâtre des Millefontaines) dirigiu Seis Personagens à Procura de Autor. Ponto de partida da intriga: preparando-se um encenador para ensaiar um conjunto de actores, irrompem no palco seis personagens de que um dramaturgo prescindiu (pai, mãe, um filho legítimo e três ilegítimos, dum amante da mãe), cuja hipótese de sobrevivência dependerá de lhes darem existência dramática.

Uma desilusão de alegorismos edificantes, que deixou atónito o público de 1921 (a inversão da forma artística sublinhava a degenerescência da família burguesa), corria o risco se ser hoje recebida com indiferença pós-moderna. Porém, Demarcy-Mota relançou a peça em torno do conceito de «cena nua» _ recupera-se em cena os três níveis de «teatro dentro do teatro» (lugar da representação, espaço teatral representado e minúsculo palco onde actores e personagens confrontam representações) _ articulado com movimentação horizontal que vinca a perda da transcendência, um trabalho de som e luz que intensifica o onirismo deste combate ao espelho e uma sincronização de prosódia e gesto dos (excelentes) actores no desenho do conflito (quase rebarbativa no seu recorte brechtiano).

Combat de Nègre et de Chiens
Autor. Bernard-Marie Koltès
Encenação. Jacques Nichet
Intépretes. François Chattot e Alain Aithnard, entre outros

Miguel Pedro Quadrio
in Diário de Notícias, 14 jul 2003

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