Isabelle Huppert, o relâmpago no nevoeiro de Bob Wilson

Inês Nadais in Público, 12 Julho 2019 notícia online

Maria Stuart, a Rainha dos Escoceses, gostava de cães. Tanto que no momento de se sentar diante do carrasco para ser decapitada por ordem da prima, Isabel I de Inglaterra, que a acusou de a querer assassinar para lhe roubar o trono, escondeu um pequeno Skye Terrier debaixo das saias do vestido — a mascote, a sua última mascote, estremeceu ao primeiro golpe, terão sido necessários vários para arrancar daquele corpo “branco e liso e sem defeitos” uma cabeça lendária (e o seu lendário animal de companhia).

Neste terceiro encontro com o seu amado Bob Wilson, seminal encenador norte-americano cuja obra se constituiu como uma das mais fulgurantes paisagens teatrais das últimas décadas — já se tinham cruzado em Orlando (1993), a partir de Virginia Woolf, e em Quartett (2006), de Heiner Müller —, a maior actriz viva do teatro francês volta a encarnar uma personagem que conhece bem (em 1996 foi a Mary Stuart de Schiller no National Theatre, em Londres), mas agora para reinar sozinha. Robert Wilson deu-lhe apenas um sapato, um papel e um fósforo, e uma cadeira para enfrentar este torrencial monólogo (uma criação de Darryl Pinckney, que já tinha assinado a adaptação de Orlando) em que Maria Stuart se debate com a tempestade dos seus “pensamentos divididos” — o resto é nevoeiro, o nevoeiro da Escócia, mais ou menos denso, mais ou menos cinzento, mas sempre nevoeiro. E a música obsessiva, doentia, de Ludovico Einaudi.

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Foto: Isabelle Huppert reina sozinha neste monólogo encenado por Robert Wilson que reconstitui a tempestade de pensamentos numa cabeça prestes a ser cortada: a de Maria Stuart, rainha dos escoceses LUCIE JANSCH

Desde que se conheceram num jantar de amigos, ele com 52 anos, ela com 40 (e uma filmografia já impressionante às costas: Jean-Luc Godard, Maurice Pialat, Claude Chabrol, Michael Cimino), cruzaram-se cirurgicamente para fazer estes espectáculos em que a precisão cerebral de Wilson, que a actriz diz ser “infinitesimal”, e a presença visceral de Huppert se amplificam mutuamente. Tal como Orlando e QuartettMary Disse o que Disse parece um diamante que levou anos a lapidar, mas o processo não é assim tão frio e tão formal: “Trata-se sempre de improvisação — mesmo que estejas a tocar a Sinfonia nº. 9 do Beethoven. Porque o que sentes é imprevisível, e é isso que é belo no teatro, porque é vivo”, explica Robert Wilson à Isabelle Huppert com menos 26 anos de Orlando, num pequeno filme de bastidores de Benoît Rossel alojado na Internet.

Quase 24 horas depois de uma récita pouco menos do que apoteótica no Espaço Pierre Cardin, o pequeno teatro dos Campos-Elísios onde o Théâtre de la Ville, produtor deste espectáculo, se barricou enquanto decorrem as obras no histórico edifício da Praça do Châtelet, e onde Mary Disse o que Disse se estreou a 22 de Maio, encontramos Isabelle Huppert no camarim número quatro. Ou melhor: esperamos por Isabelle Huppert no camarim número quatro. Foram 45 minutos de espera, o tempo para inventariar: velas de cheiro; uma pilha de recortes de imprensa encabeçada pelas críticas de Greta, um dos cinco filmes que a levarão às salas de cinema em 2019; um ramo de flores já secas; a mesa posta para o jantar; o texto da peça com sublinhados a vermelho e anotações a preto; e o frasco de frutos secos a que se agarrará durante toda a conversa, sempre a roer, sempre a trincar. E depois 30 minutos de entrevista em que dirá não estar assim tão interessada na Maria Stuart de carne e osso que foi coroada aos seis dias de vida, aos 18 anos já era viúva, viu o filho pela última vez quando ele ainda nem sabia andar, e hoje está enterrada na Abadia de Westminster em frente à prima que a mandou executar. Não, Isabelle Huppert está interessada é nessa coisa muito antiga mas ainda muito assustadora que é estar viva em frente aos vivos e representar.

Encerrada a conversa, quando já vamos a meio do corredor, assoma à porta para nos atirar, misteriosamente, que Portugal tem um encenador que adora, Tiago Rodrigues (e sim, os dois “têm planos”, confirma depois ao Ípsilon o director do Teatro Nacional D. Maria II, para já sem mais detalhes). É assim, Isabelle Huppert: o céu desfila sozinho, mas ela orienta as nuvens.

Os media franceses proclamam-na a maior actriz francesa viva com a maior das naturalidades — como se fosse um facto objectivo, indisputável. Quando está sozinha em palco, como é o caso em Mary Disse o que Disse, essas proclamações alimentam-na ou aterrorizam-na? Que efeito produzem?
Não penso muito nisso (risos). Tenho mais em que pensar, sabe? Nesta peça tenho de fazer muitas coisas, e tudo depende de mim, portanto… O que pelo contrário está na minha cabeça é que há uma enorme expectativa em relação ao espectáculo, por ser uma obra do Bob Wilson, por ser o meu reencontro com ele, com quem trabalho aqui pela terceira vez. Isso de facto sinto, e com muita intensidade, da parte do público.

E quando não está em cena, a sua aclamação como rainha do teatro francês diz-lhe alguma coisa, aborrece-a, é-lhe indiferente…? Qual é o peso de viver com isso?
Não sei dizer… E é preciso ter noção de que isso será verdade para algumas pessoas mas não necessariamente para toda a gente. Ouço dizer, leio-o, dá-me prazer, parece-me às vezes um pouco exagerado, mas não penso assim tanto nisso. Obviamente, prefiro ouvir que sou a maior actriz francesa viva do que ouvir que sou a pior.

Ontem, no final do espectáculo, foi uma apoteose. É assim todas as noites?
Tenho de dizer que sim, mas a apoteose, como lhe chamou, nunca é imediata. Com o Bob Wilson temos sempre a impressão de estar num sonho acordado, e os espectadores demoram alguns segundos a sair desse estado — depois sim, há muito calor da assistência e é agradável. Não dura muito tempo, mas é agradável.

Regressou seis vezes, talvez mesmo sete, para receber os aplausos do público. Fiquei com a sensação de que quando vem agradecer ainda está no estado anterior, o transe da personagem à beira de perder a cabeça.
Não! De todo. Pelo contrário, eu corto muito facilmente. Mas parece-me que o público ainda permanece um pouco nesse estado, e eu deixo-o acordar com calma.

Referia-me a toda a mímica com que agradece os aplausos, e que me pareceu ser ainda a linguagem corporal da personagem e não a da actriz: a vénia com que desmonta abruptamente a pose, como uma marioneta que o marionetista largasse de repente, a rotação brusca do braço com que inicia o galope para fora do palco…
Ah não, não, já não é a personagem. Isso sou eu a divertir-me a fazer como a rainha. É um jogo.

Como é que se habita um palco vazio? Aqui quase não há acessórios, quase não há cenografia, quase não há contracena… O facto de não haver pontos de referência — físicos, pelo menos — nunca a paralisa?
Mas é exactamente o contrário, há imensos pontos de referência, o palco está cheio de marcadores luminosos! O percurso está milimetricamente sinalizado, nada é deixado ao acaso com Bob Wilson. Ele trabalha para criar essa aparência de uma cena vazia, aberta, desértica, mas eu não ocupo o palco aleatoriamente, é tudo rigorosamente fixado e muitíssimo preciso.

Mas não deixa de ser um exercício solitário.
É um monólogo, é forçosamente um exercício solitário.

E essa solidão é um exercício confortável para si? Gosta de monólogos?
Sim. É já o meu terceiro monólogo — fiz o Orlando com o Bob Wilson, que aliás apresentámos em Lisboa; depois fiz o Psicose 4:48 da Sarah Kane, com o Claude Régy, que também passou pela Culturgest — e gosto bastante. É simultaneamente aterrador, porque de facto só podemos agarrar-nos a nós próprios, e muito excitante também, muito compensador: o território é inteiramente nosso, para o ocuparmos à nossa maneira, e isso dá-nos uma margem interminável, podemos desmultiplicar-nos até ao infinito. O que faz com que, bizarramente, não estejamos tão solitários como achamos estar. Sobretudo num espectáculo como este, em que o talento — mais do que o talento, o génio! — do Bob Wilson é conseguir fazer-me visitar e habitar a existência da Maria Stuart nos seus mais ínfimos recantos, da infância à morte. Isso passa pela dor, claro, mas também passa pelo humor, e às vezes pela careta, pelo esgar, porque há sempre algo de grotesco no Bob Wilson — ele interessa-se pela selvajaria, pelo animal que há dentro de cada um de nós, no sentido de uma ruptura repentina com as obrigações. Essa oscilação faz com que nas mãos dele um intérprete se sinta extremamente livre. E com que se torne muito divertido fazer um monólogo.

Para essa travessia que parece ser um jogo tão interior, do intérprete consigo próprio, a temperatura do público que está na sala é relevante?É sempre importante, sempre. Mas aqui o público é praticamente o mesmo todas as noites — não vou dizer que o público que vem ver um espectáculo como este está ganho à partida, porque há sempre alguém que está aqui por engano e que manifestamente não se interessa pela forma muito particular de Mary Disse o que Disse, mas a maior parte das pessoas já está a contar com o que vai ver, ou pelo menos está intrigada, está interessada… não é propriamente uma aventura.

Sente-se mais no seu habitat natural quando está no palco, em contacto com essa energia que emana da plateia em tempo real, ou quando está no plateau, a filmar?
Em ambos. Acho que para um actor é ainda assim mais natural estar num plateau de cinema, porque o teatro é uma situação muito incongruente. Um ser vivo diante de outros seres vivos — é de uma exposição aterradora, e no entanto existe desde a noite dos tempos, portanto também já naturalizámos a experiência. No fundo, o teatro é um paradoxo: uma coisa totalmente surpreendente que se repete século após século. O cinema é todo um outro… Mas simplifiquemos: no cinema estamos menos à beira do precipício, no teatro tudo pode acontecer.

Todas as noites há a possibilidade da catástrofe.
Certamente. É um trabalho de funâmbulo, de artista no arame. Enquanto no cinema…

A rede está lá sempre.
Isso.

Em Mary Disse o que Disse está perante uma figura real, que existiu historicamente. Mergulhou na biografia da Maria Stuart para compor a personagem, isso faz parte do seu método?
Não, de todo. Mas eu já conhecia a personagem, interpretei-a na Mary Stuartdo Schiller no National Theatre, em Londres, já há um bom tempo, ela vem-me acompanhando. O Schiller imagina um encontro, fictício, entre a Maria Stuart e a sua prima Isabel I, Rainha de Inglaterra, que lhe cortou a cabeça mas nunca a quis ver — nesta peça ela fala disso: “Isabel Tudor nunca quis encontrar-me cara a cara porque tinha medo da opinião que eu faria dela a seguir”. Já o texto do Darryl Pinckney, que considero belíssimo, inspira-se nas cartas que a Maria Stuart, excelente escritora, redigiu ao longo de toda a sua vida — há uma que digo integralmente, aquela em que anuncia ao Rei de França que vai morrer no dia seguinte. Mas eu própria mergulhar na vida dela não… Foi uma vida complicada: três maridos, diz-se que o terceiro a ajudou a matar o segundo, nunca mais reviu o seu único filho. O retrato dela fixou-se nessa imagem de uma rainha caprichosa e implacável que sabia que os homens a adoravam (e também por isso a prima tinha ciúmes). E em cima disso era católica, portanto representava um poder muito perigoso para a coroa de Inglaterra, para Isabel. Mas tudo isso, o texto da peça di-lo.

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Foto: LUCIE JANSCH

E por isso bastou-lhe?
Bom, eu teria podido… na verdade, todos os dias dizia a mim mesma que era bom que relesse a biografia do Stefan Zweig, por exemplo, que li da outra vez, ou a da Antonia Fraser, que só piquei na diagonal. Mas o texto basta-me. Vejo-o como uma poesia, uma maneira de contar a vida da Maria Stuart, e não preciso de saber mais. Não retemos tudo, porque é torrencial, mas na verdade contém uma imensidão de detalhes da sua vida: como chegou a França com a mãe, como a perdeu de vista, como se deu o seu primeiro casamento com o jovem rei francês que morreu logo a seguir, como regressou à Escócia… está lá tudo, e de um modo muito preciso e muito completo.

Como actriz, não tem necessidade de se rodear de todos os materiais sobre a personagem que existem à face da Terra?
Não. Mas é como lhe digo: eu já conhecia esta personagem.

E é uma coincidência o facto de a ter repetido?
Sim, completamente. O Darryl Pinckney, um amigo do Bob que já tinha feito a adaptação do Orlando, enviou-me a peça em inglês, mesmo antes de a dar ao Bob, isto há uns sete ou oito anos. Eu e o Bob queríamos muito voltar a fazer alguma coisa juntos, e quando o Daryl finalmente lhe passou o texto ele disse imediatamente que era isto que íamos fazer.

E o seu sim foi imediato?
Ah claro: o Bob Wilson pode propor-me o que quiser, é-me absolutamente indiferente. E em todo o caso não é o texto que lhe interessa, são as imagens. Certamente que tinha vontade de fazer o Orlando, certamente que tinha vontade de fazer este texto, não é aleatório, mas a partir do momento em que começamos a trabalhar não lhe interessa debruçar-se sobre o significado do texto, sobre a psicologia da personagem… É verdadeiramente um trabalho de artista plástico, e de formalista. Não no sentido de excluir o resto, mas, pelo contrário, no sentido de que essa sua visão muito abstracta e muito plástica inclui completamente, de uma forma intuitiva, o sentido profundo do texto e do que estamos a fazer. Não vale a pena esperar dele que dissequemos o significado de uma frase, ou a motivação de uma acção… sim, ele vai indicar-nos como dizer a frase, mas unicamente num sentido técnico: mais depressa, mais devagar, mais baixo, mais alto. É um encenador muito sensível ao som, e é por isso que a voz nesta peça é quase como uma escultura sonora, com sombras, com abismos.

A sua forma de dirigir não é também a de um coreógrafo.
Com certeza. Trata-se apenas disso, aliás: movimento. Não há mais nada. Todos os movimentos são de uma precisão extrema. É um trabalho muito particular, confesso.

E quanto tempo se demora a lá chegar?
Não muito. Ensaiámos apenas três semanas. Mas já estou habituada. Ele não gosta muito de ensaiar; em contrapartida, gosta muito de fazer workshops: juntámo-nos por uma semana há um ano, e foi muito importante, porque as grandes linhas já lá estavam. Depois ensaia muito intensamente, mas muito pouco tempo.

Na sua cabeça, Mary Disse o que Disse é a continuação de Orlando?
Sim, e para mim isso é óptimo porque tinha imensa vontade de refazer o Orlando, e ele sabia.

E não é possível?
Sim, mas teria de ser agora ou nunca, porque são temas que estão tão na ordem do dia… esta passagem de homem a mulher ressoaria ainda com mais força hoje, creio eu. É complicado porque é um espectáculo muito caro, foi produzido pelo Odéon e o Odéon nunca quis repô-lo, enfim. Mas sinto que Mary Disse o que Disse vai fazer-me esquecer o Orlando, porque vou fazê-la agora por muito tempo — e se algum dia pudermos repor o Orlando, óptimo, será genial também. São muito diferentes, no entanto: havia qualquer coisa de mais doce, de mais sonhador no Orlando, aqui é tudo muito mais violento, mais selvagem. Isso é bom, põe em jogo coisas muito diferentes: melhor assim.

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Foto: Mary Disse o que Disse é o terceiro encontro de Isabelle Huppert com Robert Wilson: antes houve Orlando, em 1993, e Quartett, em 2006

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Vendo Wilson / Huppert: A movement in time and space, o pequeno filme de Benoît Rossel sobre o processo de criação de Orlando, as semelhanças são mesmo impressionantes, há algumas passagens que…
Sem dúvida. Mas em todos os espectáculos do Bob Wilson há os mesmos gestos, as mesmas atitudes, as mesmas luzes.

No Orlando havia uma passagem em que contracenava com um vestido de mulher, aqui há uma passagem em que contracena com uma segunda Maria Stuart de carne e osso — mas é a mesma iconografia, a mesma geometria.
É verdade, é verdade.

Esse formalismo do Bob Wilson, que parece apaixoná-la verdadeiramente, cola bem com a sua intensidade enquanto actriz, com a sua violência — e, já agora, com o seu burlesco? Em teoria correriam o risco de se anular…
Mas eu tenho a impressão de que dentro desse formalismo do Bob Wilson as coisas estão extremamente encarnadas, extremamente vivas. O milagre do nosso encontro é que de um lado está o seu formalismo e do outro está a possibilidade, para mim, de estar muito viva e de ser muito, muito, muito livre — ainda mais livre do que numa encenação mais clássica. Bom, também não sei muito bem o que é isso de uma encenação clássica, no teatro trabalhei sempre com pessoas muito particulares, o [Krzysztof] Warlikowski, o Claude Régy. Penso justamente que os grandes encenadores de teatro são aqueles que abolem a convenção continuamente, e cada um tem a sua maneira de a abolir. Mas numa proposta como esta, que está resolutamente do lado da abstracção, eu encontro uma liberdade infinita. Posso fazer verdadeiramente tudo o que me passa pela cabeça — e passam-me muitas coisas pela cabeça quando represento com ele. Muitas, muitas, muitas.

Também é uma coincidência o facto de não ser a primeira vez que interpreta uma mulher condenada à morte por decapitação? Houve a Violette Nozière (1978) de Claude Chabrol, a Marie de Uma Questão de Mulheres (1988), também de Chabrol…
A Violette Nozière não chega a ser guilhotinada: é indultada e mais tarde reabilitada pelo General De Gaulle… A Marie sim, foi decapitada.

Pergunto se esta escolha de papéis sinaliza algum fascínio por este tipo de mulheres trágicas que se confrontam com a morte, ou com uma ameaça terminal.
Um fascínio da parte dos cineastas, seguramente, sem sombra de dúvida. Mas é verdade que uma mulher que acaba decapitada é qualquer coisa… Esse filme do Chabrol parte da história da última mulher condenada à morte em França (ainda houve homens depois dela) por ter praticado abortos durante a guerra, para ganhar dinheiro.

Após toda esta coabitação com Maria Stuart, vê-a de outro modo?
Não. Mas eu não sinto que esteja a representar uma personagem, sabe? Não é de todo isso que se passa aqui. Eu represento num espectáculo do Bob Wilson em torno da figura de Maria Stuart, mas poderia ser qualquer outra personagem — não é a Maria Stuart que me interessa, é o Bob Wilson.

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Foto: LUCIE JANSCH

O Bob Wilson diz que a Isabelle Huppert é um tesouro nacional. O que diz a Isabelle Huppert do Bob Wilson?
Digo que é um tesouro internacional!

Ter assistido no Irão a um monumental espectáculo dele, KA MOUNTAIN AND GUARDenia TERRACE: a story about a family and some people changing — e isto em 1972, quando tinha 19 anos —, foi determinante para a actriz que veio a ser?
Depois disso assisti a outros espectáculos do Bob que me deixaram recordações mais precisas, mas é verdade que ter descoberto essa peça no Festival de Artes de Shiraz, praticamente acabada de sair do liceu, foi uma experiência incrível. Só vi pedaços — aquilo durava sete dias e sete noites —, mas foi suficiente para perceber imediatamente o que era o Bob Wilson, o seu trabalho sobre o inconsciente… Ele inventou qualquer coisa no teatro que ninguém tinha inventado antes, e que não sei como descrever: vi imensos espectáculos dele e há algo que o identifica logo, mas ao mesmo tempo são todos muito diferentes. Talvez o teatro do Bob Wilson se aparente mais, enquanto género, à oratória, porque ele anula as fronteiras entre o teatro, a dança, a música. Com ele tudo se mistura: não é exactamente teatro, é definitivamente mais do que teatro.

Diria que esse espectáculo a formou como espectadora também?
Sim, mas foi há muitos, muitos anos, e entretanto houve outros espectáculos do Bob Wilson que me marcaram mais — mas infelizmente não vi Le Regard du Sourd.

Que se estreou justamente neste teatro há 48 anos…
Sim, no Festival de Outono de 1971. Mas pude rever o Einstein on the Beach que o Théâtre de la Ville repôs há dois anos.

Este espectáculo exige muito da sua voz, do seu corpo — não é esgotante fazê-lo noite após noite?
Sim, mas o teatro é sempre cansativo, façamos o que fizermos. É por definição uma experiência física e emocional esgotante — mas não intransponível.

E em 2019 já vai no segundo espectáculo de teatro: esteve dois meses em cena em Nova Iorque… Como é que se gerem duas peças sucessivas?
Foi a primeira vez que me aconteceu, encadear dois espectáculos. Mas eram propostas tão diferentes — uma em Nova Iorque, outra em Paris, uma em inglês, outra em francês… Se fossem dois espectáculos seguidos em Paris, não sei. Mas tudo é possível, também não haveria nisso nada de excepcional.

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Foto: Robert Wilson diz de Isabelle Huppert que ela é um tesouro nacional; Isabelle Huppert diz de Robert Wilson que ele é um tesouro internacional REGIS DUVIGNAU/REUTERS E YIORGOS KAPLANIDIS

Mas ainda há os filmes pelo meio, este ano serão cinco… É por isso que estão sempre a perguntar-lhe se não consegue parar. A Isabelle Huppert, que não tem medo de nada, tem medo disso, de sair de cena?
Mas é uma pergunta um pouco imbecil: como toda a gente, eu também paro, não trabalho 12 meses por ano! Faço as coisas que me agradam, e se for o caso faço-as de enfiada, mas há alturas em que estou quatro meses parada.

Não ter um trabalho para fazer aterrorizá-la-ia?
Francamente, não sei. Como essa situação de momento não se coloca, não posso dizer-lhe. Porque uma actriz, mesmo quando não está a fazer nada, tem sempre coisas para tratar, para treinar, para cuidar. Mas medo? Não creio que tivesse medo, mas não consigo responder.

O que vai fazer a seguir?
Também não posso dizer-lhe, porque ainda não decidi. Mas vou continuar a fazer Mary Disse o que Disse, porque a peça segue para Barcelona, Hamburgo, Florença, Lyon e uma série de outros lugares. E no ano que vem vou fazer mais teatro, O Jardim Zoológico de Cristal, do Tennessee Williams, no Odéon, encenado pelo Ivo van Hove. Estou muito contente, nunca trabalhei com ele e há muito que esperamos por este momento.

Será o seu segundo Tennessee Williams no Odéon, depois de Um Eléctrico Chamado Desejo
Oh, é um autor magnífico, que podemos puxar em todas as direcções — e o Warlikowski não se acanhou, acrescentou texto, fez corte-e-costura em cima da peça… Mas em geral o Tennessee Williams é fascinante para os actores, com aquelas maravilhosas personagens desequilibradas, que se vêem aflitas para se aguentarem nas pernas. De resto, e voltando à sua pergunta, não sei o que vou fazer mais — talvez nada!

O Ípsilon viajou a convite do Festival de Almada

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