Hanane Hajj Ali corre ao encontro de Medeia

Hanane Hajj Ali corre ao encontro de Medeia No monólogo que leva ao Festival de Almada, de hoje a domingo, a actriz e encenadora libanesa procura Medeias contemporâneas. Jogging é uma luta teatral contra uma “era de mitos e de fatalismo”.

in Público 6 Julho 2023 | notícia online

Desde os tempos em que estudou encenação na universidade que Hanane Hajj Ali se diz apaixonada pela “primeira anti-heroína por excelência”. Medeia seduzia-a enquanto personagem – como fez e faz com todas as actrizes e todos os encenadores de que a libanesa consegue lembrar-se –, mas Hanane recusava-se a interpretá-la como actriz. Era uma figura complexa, cruel e profética, que a intrigava, em parte, porque não conseguia compreender uma mãe capaz de matar os próprios filhos. Medeia estava para lá daquilo que lhe parecia verosímil e aceitável, e por mais que lesse várias teorias que explicavam “o como e o porquê” de tamanho acto, não conseguia ultrapassar esse bloqueio. A atracção por uma Medeia cheia de contradições era palpável e irresistível, mas o seu lado racional não lhe permitia ultrapassar um gesto que lhe parecia inconcebível, inumano e incoerente.

“Enganei-me, era muito ingénua”, diz hoje Hanane Hajj Ali. Essa consciência chegou-lhe como lhe chegam quase todos os sonhos e fantasias, quase todos os desejos e planos, à medida que se confronta com “coisas atrozes e coisas muito belas” durante o seu jogging matinal pelas ruas de Beirute. Vivia “um drama muito intenso e pessoal” na sua vida, o filho tinha sido diagnosticado aos sete anos com um “cancro muito agressivo” e vira-o “gritar com dores, num imenso sofrimento”.

Então, enquanto corria, num flash da sua consciência, foi tomada por essa súbita lucidez de que, num acto de amor extremo, uma mãe poderia mesmo matar um filho para aliviar o sofrimento da sua cria. Naquele momento, o tempo estancou, viu-se paralisada no meio da rua, não conseguia mexer um só músculo e reconciliou-se, finalmente, com Medeia. Mais do que isso, começou a crescer em si a obsessão por Medeia que a levaria à criação de Jogging, o solo que estreou em 2017 e leva a Almada (quatro sessões, de hoje a domingo, na Incrível Almadense) depois de ter criado um enorme impacto nos festivais de Edimburgo e de Avignon.

“Desde esse momento, passei a ser habitada de novo pela personagem de Medeia e tentei compreendê-la verdadeiramente, aproximar-me dela a partir de diferentes perspectivas”, conta Hajj Ali ao Ípsilon. “Vi muitos espectáculos, muitos filmes, li muitos livros, e durante anos fui habitada por ela.”

Mas nada ainda (há mais de dez anos) apontava com clareza para a criação de um espectáculo. Até que, por um acaso, a actriz e encenadora leu num jornal, em 2009, a história de Yvonne, “uma mulher muito bela, que vivia bem, e que, sem qualquer pista que apontasse nesse sentido, foi encontrada morta, numa certa manhã, tendo-se suicidado com as filhas e deixado um vídeo”. O vídeo, comenta Hanane, “como acontece com todos os escândalos no Líbano, deveria ter ficado no tribunal como prova, mas desapareceu graças ao suborno de um juiz, para que a família o pudesse destruir”. Do vídeo, a única frase que restou ecoava a mesma reflexão de Hajj Ali quando pensou pôr um fim à vida do filho – Yvonne matara as filhas para as poupar ao mesmo sofrimento por que tinha passado.

Foi essa história que a levou a concluir pela necessidade de criar um espectáculo que “contasse e pusesse em cena as histórias que decidimos esconder”, a história de um Líbano que, graças aos governantes que o povo elege, permite a manutenção de um sistema “que nos fracassa e nos engana, em que tudo é escondido e dissimulado”. Mas continuava a faltar uma peça que Hanane só veio a descobrir mais tarde em Zahra, uma “mulher de esquerda, apoiante da Palestina e ligada a movimentos de resistência, que se tornou uma islamista radical, alimentando os seus filhos como se fosse com o leite de uma ideologia, dizendo-lhes que, se a amavam, fariam dela a mãe de um mártir”. Dois filhos deixá-la-iam orgulhosa ao morrerem quando combatiam o Exército israelita em 2006, um terceiro filho havia de partir e morrer em combate na Síria.

Hanane, Yvonne, Zahra

Jogging junta as narrativas das três mulheres – Hanane, Yvonne e Zahra – e começa com Hanane em palco a correr e a fazer uma série de exercícios físicos enquanto relata, com mais ou menos ficção à mistura, o quanto o jogging e o teatro a ajudam a resistir e a sentir-se viva. Diz que corre “para evitar o stress e para prevenir a osteoporose”. Fala de Beirute como “uma cidade que faz demolições para construir e que constrói apenas para ser destruída”, descreve o seu dia-a-dia, encarna Valérie Dréville na Medeamaterial de Heiner Müller, faz comentários políticos, tudo sob uma aparência de leveza, de uma comédia. Até que Medeia e as suas expressões contemporâneas começam a tomar conta do monólogo e o tom se transforma, a frase shakespeariana de Hamlet é reconvertida num “algo vai podre no céu do Líbano” – e não no reino da Dinamarca – e Hajj Ali pergunta se Medeia hoje é ela própria, se é o público ou a cidade de Beirute.

Beirute é símbolo de uma terra que estrafega e sufoca os seus filhos. “Há coisas que acontecem neste país”, diz Hanane em palco, “coisas perigosas, que são discutidas brevemente mas que depois desaparecem como se nunca tivessem acontecido. Assuntos pequenos e grandes, relacionados com dinheiro, honra, honra do Governo, extremismo religioso, família, política, roubo, corrupção… mil e uma razões.” E nomeia escândalos concretos, sexuais e financeiros, julgamentos que são apagados do sistema ou arquivados quando os testemunhos são desqualificados por perjúrio.

“É nosso destino vivermos neste país, nada que possamos fazer vai alterar isso. Ainda vivemos numa era de mitos e de fatalismo”, acrescenta. Volta então a Shakespeare na peça e propõe uma nova tradução a partir de uma adaptação de Hamlet. “Algo vai trágico no reino da Dinamarca” passa a “Algo vai trágico na nossa indignada república”. À sua volta, em passo de corrida, vê catástrofes prestes a rebentar.

Hanane Hajj Ali corre para equilibrar corpo e alma, para contribuir para a produção de dopamina e adrenalina– “uma acalma-nos, a outra deixa-nos alerta”, justifica. E corre em palco porque ali pensa em voz alta, balança entre o questionamento e a esperança. “Para que a impunidade não possa instalar-se para sempre”, explica ao Ípsilon. E para que, no regresso a casa, com os pensamentos em ordem, possa não desistir e saber como se alimentar-se das suas várias frustrações. Para que Beirute, no fundo, não se torne a sua Medeia.

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