FILME DO DESASSOSSEGO

a partir do Livro do Desassossego de Fernando PESSOA um filme de João BOTELHO

6 NOVEMBRO, 2010 | SALA PRINCIPAL

Serei sempre da Rua dos Douradores, como a humanidade inteira.
Bernardo Soares, O Livro do Desassossego.

Lisboa, hoje. Um quarto de uma casa na Rua dos Douradores. Um homem inventa sonhos e estabelece teorias sobre eles. A própria matéria dos sonhos torna-se física, palpável, visível. O próprio texto torna-se matéria na sua sonoridade musical. E, diante dos nossos olhos, essa música sentida nos ouvidos, no cérebro e no coração, espalha-se pela rua onde vive, pela cidade que ele ama acima de tudo e pelo mundo inteiro. Filme desassossegado sobre fragmentos de um livro infinito e armadilhado, de uma fulgurância quase demente mas de genial claridade. O momento solar de criação de Fernando Pessoa. A solidão absoluta e perfeita do EU, sideral e sem remédio. Deus sou eu!, também escreveu Bernardo Soares.

Nota do realizador
João Botelho
Julho 2010

FILME DO DESASSOSSEGOO LIVRO DO DESASSOSSEGO, “composto” por um misterioso e modesto ajudante de guarda-livro de nome Bernardo Soares, heterónimo de Fernando Pessoa, está traduzido em 37 idiomas e espalhado pelo mundo inteiro. É o livro mais lido e divulgado do poeta, essa labiríntica e inigualável aventura literária. Nunca houve um génio criador que se identificasse tanto com o coração da cidade que o viu nascer, que coincidisse quase em absoluto com o emaranhado de ruas que calcorreou e descreveu como ninguém, com a infinidade de gentes com quem se cruzou e que descreveu com “o olhar de Deus”, numa Lisboa centro de um mundo sem centro.
Não é assim o mundo hoje?
“A minha pátria é a língua portuguesa.”. Esta frase do O LIVRO DO DESASSOSSEGO, que é “a nossa maior invenção desde as Descobertas”, levou-me a enfrentar um mar de textos transformado numa obra universalmente conhecida, armadilha de um génio, puzzle perfeito e genial porque todas as soluções são diferentes e nenhuma é definitiva. “É impossível filmar O LIVRO DO DESASSOSSEGO,”, diziam-me todos. “Talvez”, disse eu, mas a partir de um texto que não tem tempo, não tem fim e não tem igual, foi-me possível criar um FILME DO DESASSOSSEGO que não pretende ser o livro (outra coisa é o cinema, que não arte literária); não em nome da experimentação ou da artística diletância, mas em nome do cinema que eu amo acima de tudo, e da língua, que é também a minha pátria. Há no O LIVRO DO DESASSOSSEGO, dois pequenos e preciosos textos que foram decisivos para estruturar o filme e o modo de filmar. Um sobre a autonomia grandiosa do som dos textos que, quando são lidos em voz alta ou voz baixa, se elevam muito para cima do seu criador, tornando a escrita maior que o sujeito que a criou; E, outro, sobre a noção de tempo, a sua distorção, ideias que se ajustam na perfeição à noção do tempo cinematográfico. Há ainda uma pequena frase maravilhosa sobre a luz:
A mesma luz que ilumina a face dos santos e os sapatos do homem comum.” Não foi preciso mais nada para eu ficar contente. Alcançar o grão da voz, encontrar os ritmos de música verdadeira e grandiosa dos fragmentos do livro. Leiam-no em voz alta ou voz baixa, como diz Pessoa. O aperto que sentem no peito não é de gloriosa felicidade? Os olhos não ficam rasos de lágrimas e o cérebro efervescente? Distorcer o tempo e as imagens, pôr em causa o modo de as ver (utilização de diferentes velocidades, ralentis, acelerações e até lentes anamórficas, embaciadas, desfocadas) pintar o espaço com cores excessivas, não realistas, mas também fazê-las esmorecer, quase desaparecer, chegar aos tons secos, e até à pureza da gama de cinzentos, do preto e do branco. Bernardo Soares, um homem contemporâneo, de aspecto normal, indecifrável do comum dos mortais, mas com a angústia e o tédio desesperado de um funcionário modesto, e Lisboa uma cidade misteriosa, labiríntica e profunda, de inquestionável beleza e luminosidade. “Oh, Lisboa meu lar!”. Todos os outros personagens e todos os incidentes que os envolvem são, na vertigem dos sons das frases que os fazem existir, parte do desassossego do ano 2010 da nossa era.

João Botelho
Faculdade de Ciências da Universidade de Coimbra. Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto. Dirigente do CITAC. Cineclubes de Coimbra e Porto. Professor na Escola Técnica de Matosinhos. Ilustrador de livros infantis e artes gráficas a partir de 1970. Escola de Cinema do Conservatório Nacional. Crítico de cinema em jornais e revistas. Funda a revista de cinema M. Inicia-se na realização com 2 curtas-metragens para a RTP e o documentário de longa metragem “Os Bonecos de Santo Aleixo” para a cooperativa Paz dos Reis. Filmes premiados nos festivais de Figueira da Foz, Antuérpia, Rio de Janeiro, Veneza, Berlim, Salsomaggiore, Pesaro, Belfort, Cartagena, etc. Distinguido por duas vezes com o prémio da OCIC, da Casa da Imprensa e dos Sete de Ouro. Todas as longas metragens tiveram exibição comercial em Portugal, quase todas em França e alguns em Inglaterra, na Alemanha, em Itália, em Espanha e no Japão. Teve retrospectivas integrais em Bergamo (1996), com edição de uma monografia sobre a obra em La Rochelle (1998) e na Cinemateca de Luxemburgo (2002). Distinguido com a Comenda da Ordem do Infante, de mérito cultural (2005).

NOVEMBRO, 2010 | SALA PRINCIPAL | M/12

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