Festival de Almada: colonialismos e violência sobre os corpos

Naquele que será, porventura, o momento de maior expressão mediática desta edição, Monica Bellucci subirá ao palco do Centro Cultural de Belém (10 e 11 de Julho) para se meter na pele da maior cantora lírica de sempre, Maria Callas, numa criação de Tom Volf que visita a sua vida a partir do livro Maria Callas – Lettres et Mémoires, adaptado para a cena.

Gonçalo Frota in Público, 09 Julho 2021 | notícia online

O Festival de Almada entra na sua segunda semana e para trás ficam já as primeiras imagens desta edição. O arranque simultâneo, a 2 de Julho, com Hipólito, Aurora Negra, History of Violence e Amitié permitia, desde logo, fazer um raio-X a este 38.º ano do mais importante festival de teatro no calendário português – a decorrer até 25 de Julho. Hipólito, tragédia grega clássica de Eurípides aqui revisitada pela mão do decano encenador Rogério de Carvalho, falava de forma muito directa para a história da Companhia de Teatro de Almada, numa das duas peças estreadas no festival como forma de celebrar os 50 anos da estrutura fundada por Joaquim Benite. Mas ao mesmo tempo que promovia o diálogo com uma outra encenação de Rogério para a CTA (Fedra, de Racine, 2006), numa outra perspectiva para a narrativa desta vingança que Afrodite faz abater sobre Hipólito e, por consequência sobre Fedra, colocava-nos também perante noções de pertença, de exclusão e de violência sobre o corpo que atravessa boa parte desta programação.

Acusado injustamente por Teseu, Hipólito acaba por ser expulso da cidade e sucumbir ao pior dos destinos. O seu corpo é um corpo rejeitado por ter despertado o desejo na madrasta Fedra. Por seu lado, Aurora Negra, criação de Cleo Diára, Isabél Zuaa e Nádia Yracema, confrontava-nos com a invisibilidade do corpo negro nos palcos portugueses, enquanto History of Violence, espectáculo de Ivica Buljan a partir do livro de Édouard Louis que narra a sua violação na véspera de Natal por um descendente de argelinos ocupava-se do exercício da violência e dominação sobre o outro, mas também dos preconceitos culturais e homofóbicos surgidos quando o autor francês se viu perante a dessintonia entre o seu relato de uma experiência traumática e a versão fixada no relatório policial.

Dir-se-ia que a partir daqui se abrem muitos outros diálogos extensíveis a parte considerável da programação do Festival de Almada. O corpo do pai de Édouard Louis, esmagado e desprezado por parte dos governantes franceses, está por todo o lado em Who Killed My Father, encenado por Ivo van Hove (desta quinta-feira a 10 de Julho, Teatro Nacional D. Maria II, Lisboa); as memórias traumáticas do colonialismo português (em particular da Guerra Colonial) dominam as criações de Rita Neves e Patrícia Couveiro (Corpo Suspenso, 9 a 12, Incrível Almadense), e de Rodrigo Francisco (Um Gajo Nunca Mais É a Mesma Coisa, 14 a 25, Teatro Joaquim Benite, Almada); o colonialismo financeiro está na base de Tierras del Sud, peça de Laida Azkona Goñi e Txalo Toloza-Fernández que incide sobre a exploração do território da Patagónia por milionários europeus (entretanto substituída nas mesmas datas, desta quinta feira a 11 de Julho, Fórum Romeu Correia, Almada, por Cenas da Vida Conjugal, Bergman por Rita Calçada Bastos, devido à impossibilidade de viajar dos artistas franco-chilenos); de novo a violência exercida sobre o corpo feminino, neste caso, no desconcertante espectáculo da dupla espanhola Agnès Mateus e Quim Tarrida, Rebota Rebota y en Tu cara Explota (14 a 18, Cine-Teatro da Academia Almadense), espectáculo que o público elegeu há um ano como espectáculo de honra desta edição; ou o corpo como reservatório de memória que atravessa tanto, em perspectivas muito distintas, Omma, de Josef Nadj, quanto Planeta Dança – Capítulo 4, de Sónia Baptista (10 e 11, Cine-Teatro da Academia Almadense).

Claro que o Festival de Almada não se esgota nestas linhas acidentais de coincidências ou tangências temáticas. Naquele que será, porventura, o momento de maior expressão mediática desta edição, Monica Bellucci subirá ao palco do Centro Cultural de Belém (10 e 11) para se meter na pele da maior cantora lírica de sempre, Maria Callas, numa criação de Tom Volf que visita a sua vida a partir do livro Maria Callas – Lettres et Mémoires, adaptado para a cena. Juntam-se ainda, como habitualmente, reposições de vários espectáculos portugueses numa oportunidade ideal de (re)descoberta, como acontecerá com Fake (de Miguel Fragata e Inês Barahona, 15 a 18, Fórum Romeu Correia), O Canto do Cisne (de Clara Andermatt e pela CNB, 16 a 18, Teatro Joaquim Benite), Discurso Sobre o Filho-da-Puta (de Alberto Pimenta, encenação de Fernando Mora Ramos, 16 a 23, Teatro Estúdio António Assunção), Viagem a Portugal (de Joana Craveiro, 22 a 25, Fórum Romeu Correia) e Lorenzaccio (de Alfred de Musset, por Rogério de Carvalho, 23 a 25, Teatro Joaquim Benite).

E que a atenção não ignore a estreia de Duas Personagens, peça tardia de Tennessee Williams que Carla Galvão e Sara de Castro levam ao Teatro Estúdio António Assunção de 7 a 14, e as apresentações, de 20 a 25, no Salão de Festas da Incrível Almadense, de Molly Bloom, mergulho de Viviane de Muynck e Jan Lauwers no monólogo da personagem no Ulisses de James Joyce.

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