Festival de Almada: 40 anos a celebrar o teatro

É em Almada Velha que nasce, em 1984, a primeira “Festa do Teatro”, no Beco dos Tanoeiros. Quarenta anos mais tarde, o ALMADENSE foi descobrir a história deste festival e perceber aquilo que o torna um dos mais conceituados da Europa.

Mariana Vaz de Almeida in Almadense 24 Agosto 2023 | notícia online

De 4 a 18 de julho, ano após ano, Almada enche-se de apaixonados pelo teatro. Chegam de todo o país e até do estrangeiro, de onde vêm igualmente várias das companhias com atuação marcada. Porém, uma grande parte do público chega de perto – vem da própria cidade de Almada, onde, entre o chamado “não-público”, cresceu um dos mais investidos e solidários núcleos de espectadores: o Clube de Amigos da Companhia de Teatro de Almada.

É terça-feira, 4 de julho, e está calor. Entrando pelos portões da escola D. António da Costa, ouve-se tocar a Orquestra de Câmara de Cascais e Oeiras. Acontecem, por entre o tilintar de copos e talheres, os reencontros: de autores, de atores, de espectadores assíduos. Pela fila em caracol que se forma no pátio, em baixo, depressa se chega às bancadas do palco grande. Quebrando o burburinho do público, começam as apresentações: falam Inês de Medeiros, presidente da Câmara de Almada, e Rodrigo Francisco, dramaturgo, encenador e diretor artístico da Companhia de Teatro de Almada e do Festival. De seguida, silêncio: é o primeiro espetáculo da quadragésima edição da grande festa do teatro, e vai começar.

É nesse 4 de julho pelas 22h que se descobre, sob o céu estrelado, uma nova forma de ver teatro, que remonta à primeira edição do Festival – na altura ainda “Semana de Teatro Amador do Concelho de Almada”, ao ar livre. Em 1984, o Beco dos Tanoeiros, em Almada Velha, recebeu sete grupos de teatro amador, a cujos espectáculos os almadenses assistiram quer sentados em cadeiras emprestadas que preenchiam a plateia, quer a partir das suas próprias janelas.

Rodrigo Francisco, atual diretor do Festival, recorda a edição de 1988, a que assistiu aos 12 anos, da sua varanda: “Estamos na sala, em família, a ver televisão com as persianas abertas. Lá fora rompe um alarido. Corro à varanda. No prédio em frente, uma mulher grita à janela, agarrada a um polícia ou a um bombeiro. Na estrada, um toureiro empurra uma carripana à frente de um andor com gente às gargalhadas. Percebo que não há perigo. «É o teatro», diz a minha irmã, e volta para a televisão. Mas eu fico à varanda, com os meus pais”. É esta a memória que abre “A Festa”, um dos quatro volumes que compõem a coleção “CTA: 40 anos em Almada”, publicada pela Caleidoscópio em 2018.

Hoje, são muitos os espectadores que se sentam na plateia ou na esplanada, para assistir às mais variadas iniciativas: o Festival não se esgota no teatro e, na sua vontade de se fundir com a cidade de Almada e os seus habitantes, traz conversas, concertos, exposições encontros e até cursos para se interessa pelas artes do espetáculo.

“Quinze dias de teatro sem parar”

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Em 2023, o Festival de Almada perfaz um número redondo: 40 anos, ao lado dos 50 anos da Cidade de Almada. Inês de Medeiros sublinha, no palco, que “Almada e Teatro são dois lados do mesmo coração”. Por entre momentos de grande dificuldade – como a possibilidade de perder o apoio estatal, em 2001, ou a descida abrupta da subvenção da Direção Geral das Artes, em 2012 – o Festival continuou sempre a crescer; até durante os anos de covid, em que os 15 dias de teatro passaram a 24, de modo a respeitar as diretivas em vigor.

De sete sessões, em 1984, até 44 em 2023, o Festival sempre se pautou por uma procura do que de melhor se faz no país e fora dele, tendo em conta o público a quem se dirige. “Um teatro elitista para todos”, como escreve Rui Ferreira e Sousa para o Público, em julho de 1999: uma perfeita descrição do Festival de Almada.

Este é hoje um evento ímpar a nível nacional, que reúne na mesma cidade, nos mesmos espaços de representação e convívio projetos inovadores e companhias consagradas, constituindo “ um ponto de encontro entre criadores”, como referiu Rodrigo Francisco em entrevista ao ALMADENSE.

Hoje, em 2023, o Festival já não se vê das varandas de Almada Velha, mas continua a crescer e atrair novo público. Desde o crítico e cómico “¡Que salga Aristófanes!” a viagens interiores como “Everywoman” e “Ventos do Apocalipse”, o evento continua a trazer a Almada espetáculos de teatro, dança e novo circo de elevada qualidade, que permitem encontrar novas formas de reflexão e novas posturas face à realidade. Desta forma, cria-se na cidade um público cada vez mais exigente, com melhores ferramentas para avaliar as produções da CTA – quatro por ano.

Uma das produções de 2023 é Calvário, de Rodrigo Francisco, que para além de estar patente no Festival – no qual ocupou seis sessões – voltará ao palco do Teatro Municipal Joaquim Benite, entre 29 de setembro e 15 de outubro. “Calvário”, nome dado às falas de que os atores se esquecem repetidamente, leva à reflexão sobre o mundo do teatro e sobre o absurdo da vida, pensando os textos que devem – ou não(?) – ser representados.

O Espetáculo de Honra de 2022 – “Eu sou a minha própria mulher”, de Doug Wright – voltou a 7, 9 e 11 de julho ao Fórum Municipal Romeu Correia, onde recebeu de novo uma ovação entusiástica. No seguimento de uma tradição já longa do Festival, iniciada em 1987, é o público que vota no seu espetáculo favorito, que poderá ser revisto na edição seguinte.

A Companhia de Teatro de Almada: das origens ao Teatro Azul

É em 1969 que nasce, numa coletividade lisboeta, um grupo de teatro formado por jovens estudantes oposicionistas ao regime: O Grupo de Teatro de Campolide. Para dirigir a primeira peça é convidado um conceituado crítico teatral que, desde há algum tempo, tentava encenar “O avançado-centro morreu ao amanhecer”: o seu nome, agora incontornável entre o público almadense – e nacional – era Joaquim Benite.

Foi aí, ainda em ditadura, que o grupo que iria dar origem à Companhia de Teatro de Almada iniciou a sua longa e frutífera viagem. Com o seguinte espetáculo, “Vida do grande D. Quixote de La Mancha e do gordo Sancho Pança”, com autoria d’”O Judeu”, o Grupo ganha o prémio de Melhor Espectáculo Amador desse ano, iniciando uma intensa atividade de digressão por todo o país. Trata-se, como explica Urbano Tavares Rodrigues no jornal “O Século”, em 1972, de “Teatro autêntico, compartilhado, vivo, constituindo com o público uma realidade dinâmica, uma festa contagiante”.

Pouco depois, em 1974, chega a grande noite e com ela a Liberdade. Nesse momento político, o Grupo de Campolide cresce com as campanhas de dinamização cultural do Movimento das Forças Armadas, atendendo a vários pedidos de representação por todo o país. Por exemplo de Ponte de Lima chega, em 1975, um pedido de “sessões de teatro progressista” a apresentar à população limiana, anteriormente “submetida à escravatura cultural anticomunista”.

Pouco depois, em 1977, o Grupo profissionaliza-se no Teatro da Trindade, não sem alguns percalços que levaram, ainda em ’76, ao nascimento de “uma ideia nova em Portugal” (assim lhe chama o próprio Grupo de Campolide, num cartaz de divulgação) – a Associação de espectadores, que corresponde ao atual Clube de Amigos, tão simbólico do carinho e do respeito que a comunidade tem pela CTA. Foi a Associação de Espectadores que, pagando uma quota, passou a constituir “um suporte económico seguro e estável do Grupo”, como indica “O Diário” de 23 de dezembro. Nesse dia, já mais de mil sócios tinham aderido à iniciativa sem precedentes. Foi o apoio dos espectadores, como indica o programa da seguinte peça estreada pelo Grupo, que “permitiu que o Grupo de Campolide vivesse”.

Em 1978, com um ano de existência como grupo profissionalizado, a Companhia decide sair do Teatro da Trindade e atravessar o rio, rumo a Almada, na onda da política de descentralização cultural que se fazia sentir. “Almada era então uma cidade maioritariamente operária, com uma indústria naval potentíssima”, recorda Teresa Gafeira, um dos membros-fundadores.

Da profissionalização ao primeiro Festival – a “Semana de Teatro Amador” – passam ainda alguns anos, vários esforços e muito teatro. Estreia, por exemplo, no Teatro da Academia Almadense (onde o Grupo tinha passado a ensaiar) a primeira experiência teatral de Saramago. “A Noite”, que versa sobre a emocionante noite de 24 para 25 de abril, ganhou o prémio de Melhor Texto Português estreado nesse ano, atribuído pela Associação Portuguesa de Críticos de Teatro.

Em 1981, o Estado atribui pela primeira vez à Companhia um subsídio por três anos, o que vai permitir uma melhor planificação do trabalho. No ano seguinte, o Grupo expressa face ao Município de Almada a necessidade de um novo espaço – de instalações próprias ou cedidas pelo município que venham substituir a sala alugada da Academia Almadense. E é assim que, em 1987, a Câmara Municipal de Almada cede ao Grupo de Teatro de Campolide o espaço da antiga Oficina da Cultura, hoje Teatro Estúdio António-Assunção. Em 1999 inicia-se, finalmente, o projeto de construção do novo Teatro Municipal – concebido desde o princípio para albergar a Companhia de Teatro de Almada.

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Em 2005, abre finalmente as portas o Teatro Azul – ou, como se lhe refere Rodrigo Francisco em entrevista ao ALMADENSE, “um festival [que dura] todo o ano”. Quem hoje entra neste edificio pode espreitar a árvore ao centro, metáfora da vida crescente da Companhia. Debaixo dela está a primeira pedra. À volta, o azul do Teatro que marca – parece já que desde sempre e para sempre – o horizonte criativo de Almada.

“Um improvisado e pequeno palco”, ou como nasce um Festival

Hoje, o Festival de Almada é grande – não só em ambição, como sempre foi, mas também no número de salas e palcos que o acolhem. Torna-se difícil acreditar que o seu início se deu, já há quarenta anos, num pequeno beco de Almada Velha, o Beco dos Tanoeiros, com cadeiras emprestadas e sete grupos amadores.

O inicial intuito do Festival era “a revitalização da zona velha de Almada, que apenas os habitantes da própria cidade conheciam e cuja configuração urbanística e social pouco tinha a ver com o «dormitório», que se avistava da outra margem do Tejo” – assim se pode ler no volume “A festa”, da coleção já indicada.

Em 1987, Carlos Porto, conceituado crítico de teatro, destaca a grande particularidade do Festival, referindo no “Diário de Lisboa” que “talvez tenha sido essa participação [do público] o que na festa houve de mais surpreendente, tanto mais que esse público era constituído por espectadores com raros contactos com o teatro”. Já Manuel Rio-Carvalho fala, no mesmo ano, do “consumo eufórico de teatro” que aqui se fazia sentir.

Apenas dois anos depois, em 1989, o Festival já se espraiava pela Incrível Almadense, pelo antigo Teatro Municipal de Almada (hoje Teatro-Estúdio António Assunção) e, pela primeira vez, chegou ao Palácio da Cerca, instalando-se nos seus jardins um palco para a ocasião.

Foi esta grande festa do teatro que conseguiu, efetivamente, dirigir os olhos para Almada Velha e para a necessidade da sua reabilitação. Em julho de 1991, pode ler-se no jornal Expresso: “a importância do Festival reflecte-se paralelamente na promoção e recuperação do património local. Para além da requalificação da zona antiga da cidade, as necessidades criadas pelo Festival de Almada suscitaram já, por exemplo, a criação de locais de lazer (o Bar-Galeria de Exposições da Cerca), o melhoramento das zonas necessárias para o alargamento do número de espaços disponíveis (a recuperação e ajardinamento do Pátio da Boca do Vento) e, sobretudo, a aquisição e recuperação do Palácio da Cerca”. Em 1996, o palácio centenário torna-se Imóvel de Interesse Público.

Em 1997, o Festival atravessa pela primeira vez o rio Tejo, com o regresso da Companhia ao imponente Teatro da Trindade, no Chiado. Não tendo ainda nascido o Teatro Azul, hoje Teatro Municipal Joaquim Benite, mostrava-se necessário encontrar um palco com dimensões suficientes para abarcar espetáculos de grande formato, como este “Haciendo Lorca” de Lluis Pasqual – para além do Palco Grande da escola D. António da Costa, com as limitações técnicas inerentes a um palco ao ar livre.

Inicia-se então um período de crescimento do Festival que, cada vez mais, extravasa as margens de Almada e dá frutos na capital. O alargamento do Festival a Lisboa foi um êxito, formando-se “uma verdadeira corrente de público entusiasta” durante o mês de julho (volume “A Festa”). Salas como o Centro Cultural de Belém (em 1999 e 2023), o Teatro São Luiz (em 2004) ou o Teatro do Bairro, em 2015, passaram a fazer parte da grande celebração do teatro, que continua a ter em Almada o seu centro.

Uma mesa onde cabem todos

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“Construir uma peça é como um campo de batalha”: quem o diz é Joana Craveiro, autora da peça-concerto “Aquilo que Ouvíamos” que, na noite de 7 de julho, encheu as bancadas do Palco Grande da escola D. António da Costa – como se de um concerto se tratasse. As palmas passaram a dança e as palavras transformaram-se em música, no teatro documental de excelência que é já chancela do Teatro do Vestido.

Entre as sonoridades dos “Loosers” e testemunhos sobre a cena musical dos anos 80, “Aquilo que ouvíamos” é materialização das intenções do Festival de Almada: reunir na periferia novas propostas teatrais de grande qualidade, que levem o público – tanto o fiel Clube de Amigos como os novos espectadores – a questionar-se, a repensar a sua ideia de teatro, e, claro, a divertir-se e rever-se (ou não) naquilo que é narrado em palco.

Mas as peças não se esgotam na noite da sua representação: numa iniciativa que é marca identitária do Festival, os criadores juntam-se, dialogam entre si e com o público, na grande esplanada da escola D. António da Costa. Aí, entre copos de vinho e fatias de bolo, acontecem os “Colóquios na Esplanada”, que esbatem a fronteira entre quem vê e quem faz – afinal, segundo palavras de Joaquim Benite, são todos parte do mesmo espetáculo.

No dia 8 de julho, foi a vez de Joana Craveiro. Pensando a nostalgia e o teatro documental, a autora ouviu testemunhos entusiásticos sobre a vivência destes anos 80, desde as memórias positivas aos problemas que andavam a par com o punk-rock, como a epidemia de estupefacientes. Para a dramaturga, “a nostalgia é uma arma carregada de futuro”, que leva ao repensar do passado encontrando, assim, soluções para o presente.

Estas conversas informais refletem o espírito do fundador Joaquim Benite que, já em 1972, interpela o público, dizendo: “não pode haver teatro se não houver actores e espectadores, isto é, aqueles que preparam a peça, e aqueles que vêem a peça. (…) Para ser um bom espectador, um bom público, você tem que se esforçar um bocadinho, (…) procurar entender as razões por que gosta ou não gosta, fazer perguntas, discutir”.

Na génese do Festival de Almada, ainda nos anos 80, já se encontrava esta ambição de conquistar a plateia, de criar um novo público a partir do “não-público” de uma cidade operária, com parcos contactos prévios com o teatro, que poderia agora descobri-lo a par e passo com os membros do Grupo.

E assim foi: este público, menos moldado por uma prática cultural continuada, estava mais aberto a um teatro “que não fosse um teatro de mero entretenimento, mas que apelasse ao prazer inteligente da reflexão e também de uma consciencialização política”, referiu Rodrigo Francisco em entrevista ao jornal ALMADENSE.

Só cultivando os espectadores – tornando a plateia mais exigente – é que a Companhia de Teatro de Almada pôde continuar, sempre, a criar mais e, acima de tudo, a criar melhor. A CTA estabeleceu em Almada, desta forma, não só o teatro de qualidade, mas também o público que reivindica a continuação desse teatro de qualidade.

E muitos são os testemunhos destes primeiros anos e do espírito inovador que sempre caracterizou a CTA. Joaquim do Carmo, antigo trabalhador da Lisnave, recorda um almoço partilhado entre actores e trabalhadores do estaleiro, ainda em 1980: “Tinham visto os actores na televisão, mas tê-los sentados à mesa com eles, num diálogo mano-a-mano – ao Canto e Castro, ao António Assunção, a essa gente que aparecia na televisão… Vocês não fazem ideia do fascínio que isso provocava nos trabalhadores, e do impacto que tinha” – e continua a ter.

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Entretanto, já é noite de 18 de julho e chegámos, mais uma vez, ao último espetáculo do Festival: “Une Cérémonie”, um encontro de artistas que celebram efusivamente algo que não sabem ao certo o que é. Antes do início da peça, um dos atores aponta alguém no palco e pergunta ao ALMADENSE: “é a presidente da Câmara”? “Sim, é”. Inês de Medeiros, depois de apresentar os vencedores do prémio de jornalismo Carlos Porto, senta-se na primeira fila. Aí, depois de um curto silêncio, começa o espectáculo, pejado de farpas à vivência política. O público, animado, responde aos atores e ri às gargalhadas. A presidente também.

No fim, Rodrigo Francisco sobe ao palco e anuncia a escolha do público de “Jogging”, de Hanane Hajj Ali, para voltar no próximo ano. Diz, ainda, que a organização oferece, na roulotte de fritos à saída, uma fartura a todos os espectadores. É este o espírito do Festival de Almada: um lugar único a nível mundial onde os artistas e público se reúnem para partilhar experiências e ideias, tanto no palco como à mesa. O teatro que é de todos – e para todos.

Fotos: Bruno Marreiros
Nota: Os materiais consultados pelo ALMADENSE na elaboração deste texto encontram-se nos volumes “Sonhar”, “Plantar” e “A Festa”, da coleção CTA – 40 anos em Almada, editados em 2018 pela Caleidoscópio, e no volume “Conversas”, publicado em 2022 pela mesma editora. Foram também consultadas as folhas de sala, folhas informativas e programa do 40. º Festival de Almada.

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