
Ferver por dentro
"CORPO SUSPENSO", DE RITA NEVES, SENDO MAIS UM PASSO NESSE CHÃO NOVO SOBRE A NOSSA EXPERIÊNCIA COLONIAL QUE A ARTE, O PENSAMENTO E O JORNALISMO COMEÇARAM A DESBRAVAR, DÁ-LHE UM POUCO MAIS CARNE, QUASE QUE O CORPO TRAUMATIZADO DO PAI PASSA PARA O CORPO DA FILHA, A ACTRIZ.
Joaquim Paulo Nogueira in Rua de Baixo, 09 Agosto 2021 | notícia online
Quando Édouard Louis, em Quem matou o meu pai?, diz, “agora são os filhos que vêm salvar os pais”, bem poderia estar a referir-se a um crescente conjunto de criadores, artistas, jornalistas e investigadores cujos trabalhos são um esforço na tentativa de fazerem a anatomia de um silêncio, de um interdito, de uma dor, de um trauma.
É uma geração que recusou receber esta experiência de uma não inscrição, sem lhe levantarem o véu, sem lhe apontarem o bisturi. E se durante muitos anos tivemos esse queixume de que, ao invés do que se passou com a Guerra do Vietname, estes treze anos de pesadelo não produziram durante décadas senão escassas obras na ficção nacional, a verdade é que nos últimos dez anos os estudos do chamado pós-colonialismo ganharam a cátedra, o palco, o ecrã e os escaparates das livrarias.
Corpo suspenso sendo um espectáculo que nasce desta coisa pessoalíssima que é a necessidade de uma mulher compreender o homem a quem chama pai, é também um trabalho nutrido pela investigação. Os conceitos de matérias fantasmas da socióloga Avery Gordon e a de Corpo Arquivo, de André Lepeki, estão presentes na conceção deste trabalho. Regressos quase perfeitos, memórias da guerra de Angola, investigação da antropóloga Maria José Lobo Antunes, a partir do trabalho de pesquisa sobre o batalhão que esteve com o seu pai em Angola, foi também uma das suas referências.
E esta questão é fundamental como explicou Rita Neves na conversa com o público: “a minha ideia era o corpo como arquivo. Que marcas é que tinham ficado neste corpo do meu pai.” A primeira vez que levantou esta questão foi quando fez um levantamento através de uma entrevista. Ainda não sabia para onde a levaria o material. Queria gravar algumas memórias do seu pai. Passado algum tempo quando voltou a esse material percebeu haver ali uma suspensão no momento da guerra e naqueles dois anos e meio entre o seu embarque no Vera Cruz e o seu regresso, parece que não houve nada. “-Há aqui naquele corpo uma opacidade que me acompanhou pela vida toda, e talvez essa entrevista tenha sido o motor”, acrescentou Rita Neves.
O processo de trabalho
Rita Neves actriz e a criadora da ideia do espetáculo é filha de um ex-combatente e vai trabalhar com a dramaturga Patrícia Couveiro, também ela com um pai que esteve na guerra colonial. Embora o processo seja centrado no confronto de Rita Neves com este corpo em suspensão, Patrícia também irá intervir, de forma discreta, complementar, faz a luz, a sonoplastia, até interpreta as vozes, do pai, da pide, do militar na inspeção militar que contracena com um corpo ambíguo, tanto o de Rita Neves, actriz como o do seu pai, recruta. Foi uma opção dramatúrgia que tomaram a certa altura, como explicou Rita Neves na conversa com o público:
“- Sou filha de um ex-combatente, as biografias dele e da minha estariam expostas, as marcas no corpo dele e no meu, e isso apareceu de uma forma muito orgânica, eu por vezes fazia pausas, ao reflectir sobre uma determinada improvisação estava a trazer a minha biografia. E como isso acontecia surgiu a proposta da Patrícia de cruzarmos as duas biografias.”
As memórias da guerra trazidas por seu pai, talvez fosse melhor, arrancadas a ferros ao seu pai, eram uns episódios muito neutros, alguns quase anedóticos. Quando começou a ir aos encontros do seu pai apercebeu-se de que havia algo oculto. Ou era um colega do pai que perdia o controlo emocional, ou era um primo do pai que não tinha pernas e que só mais tarde soube ter sido ferido numa mina anti-pessoal.
“O sabor de um cigarro é dos melhores companheiros em horas de derradeira tristeza. Amando e partir é o maior sacrifício”.
O álbum de fotografias da guerra trazia-lhe um enorme vazio, uma suspensão. Um dia ao ler uma legenda de uma fotografia, sobre o prazer de fumar um cigarro, viu essas suspensões e ai sabia para onde iria o trabalho: queria perceber essas suspensões, essas elipses, essas pausas, essa memoria esburacada.

Compreender com o corpo, com o seu próprio corpo
Vimos o espectáculo no Salão de Festas da Incrível Almadense. É uma cena muito crua, sem grande aparato teatral. Tudo é feito à mostra. O espaço está delimitado nos seus limites á direita e à esquerda por canas, por ramos.
No lado esquerdo há uma mesa onde estão muitas fotos, iluminação muito diluída, alguns focos, um candeeiro, e no lado direito um espaço de representação com o chão delimitado, enquadrado por uma tela onde iremos ver alguns vídeos e fotos.
Há ali um misto de caos e ordem, entre a estrutura do objecto e as coisas, os ramos que são manipulados, arrastados, levados de um lado para o outro. Patrícia Couveiro está também do lado direito, a operar o som, a luz, a intervir quando é necessário.
O jogo da representação reside neste vaivém da Rita quer a fazer de seu pai, quer a fazer dela própria. Fuma muito, como o pai, fala com repetições, repete algumas frases, faz desvios no discurso, conta a história do macaco, das cervejas. Apodera-se da dor do pai, encarna-a, é um processo, não faz uma tese, dá o seu corpo, o corpo vai em crescendo, começa por uma circularidade discursiva, por este fugir de se “reencontrar ou de se reencontrar fugindo”, e depois avança para aquele momento na guerra em que ele quis abandonar tudo aquilo.
Ela não sabe exactamente o que aconteceu. O pai terá apontado a arma à cabeça, quem o contou foi o seu tio, o pai travou antes de o confessar. São as histórias impossíveis de contar. Estes homens trouxeram a guerra no corpo, casaram-se com ela para toda a vida. Ela só sabia que o pai parecia cultivar uma certa indiferença, um quase desprezo, pela vida. Pequenos episódios, coisas que pareciam não ter importância, ir nadar com bandeira vermelha, era um desligamento.
O pai ferve em pouca água, ela vem a descobrir que também. A catarse torna-se mais forte, à medida que se aproxima do final. A memória daqueles miúdos de vinte anos a riscarem o dia logo na alvorada, um dia a menos, um dia a menos naquele lugar. Traz os amigos do seu pai também para a história. Trata-os pelos apelidos, tal como na tropa, ou por uma característica.
No fim carrega o corpo dos colegas do seu pai, são as plantas, os ramos. É a libertação, ou melhor, a tentativa de libertação destas histórias. A história não acaba ali, a suspensão ficou gravada na memória do seu próprio corpo.:
“- Estes não fim de história nos nossos corpos, estes não fim de guerra nos nossos corpos.”, diz Rita.
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CORPO SUSPENSO
Conceito e direcção Rita Neves Criação, texto e interpretação Patrícia Couveiro Rita Neves
Latoaria/Candonga Associação Cultural (Lisboa) Apoio: Fundação Calouste Gulbenkian, Fundação GDA e República Portuguesa – Cultura/Direcção Geral das Artes