Feios, gulosos e maus

Rui Monteiro in Público, 12 Maio 2021

Humanidade, daquela nascida da empatia com o outro, essa, não, não se encontra nesta peça. Agora, humanidade no sentido do conjunto de características próprias da natureza humana, sim, essa faz parte desta representação metafórica. Com um senão: o autor só dá a ver o lado mau da coisa, e o encenador encontra uma perspectiva ainda pior do ser humano enquanto cria um cabaré burlesco e patético onde a grosseria é uma atitude.

Antes de tornar isto mais confuso, convém saber que em cena estão o pior entre os piores. Shitz, Tcheca, Shprassi, pai, mãe e filha, mais Tcharkas, o noivo da moça, que será genro e pai não tardará muito. São todos (interpretados por André Pardal, Diogo Bach, Erica Rodrigues, Pedro Walter, e ainda, ao piano, Ariel Rodríguez), além de disformes e precocemente envelhecidos, todos do piorio. Gente capaz do mais reles comportamento (a filha a querer ser órfã; a esposa fantasiando o amante que deseja mal o marido vá desta para melhor; o genro a aproveitar-se da vontade dos pais em verem-se livres da filha; o pai, mais preocupado em poupar e assegurar a sua posição do que no bem-estar de filha e neto… E o rol continua), do mais baixo sentimento, cada um a correr por si como se entre eles não existisse, como não existe, apesar dos acordos de ocasião, qualquer intenção de entender, muito menos beneficiar o outro. Antes a vontade de safar o seu próprio couro, de preferência (ou, pelo menos, se necessário) à custa do parceiro mais à mão para ser lixado. Em uma coisa estão todos de acordo: enfardar é preciso, e quanto mais baba-de-camelo e batatas fritas, melhor.

A peça de Hanoch Levin (1943-1999), um controverso mas popular dramaturgo israelita agora estreado em Portugal, não é, no entanto, sobre gula. Ou é, mas sobre uma gula que vai para lá da ingestão compulsiva de comida ou mesmo do consumismo, que ainda é a metáfora mais óbvia, pois o autor, esticando a corda da técnica alegórica, encontra aqui um símbolo de comportamento social que impulsiona o movimento da sociedade na direcção do sectarismo. Movimento que a encenação de Cafiero (que, em 2016, assinou, também para a CTA, um dos êxitos do Festival de Almada, com a sua montagem de O Feio, de Marius von Mayenburg) aproveita a medula e radicaliza o texto praticamente até à beira do apocalipse – senão um pouco para além dele.

O que faz bastante sentido em peça escrita em 1974, com a acção passando-se entre a euforia israelita pela vitória na Guerra dos Seis Dias, em 1967, e a frustração que se seguiu à Guerra do Yom Kippur, em 1973, período de grande enriquecimento para alguns, mas para o autor o início da decadência moral do Estado de Israel. Contexto que o talento de Levin transformou em universal e a habilidade de Cafiero explicita de maneira crua e suja nesta cabarética versão de comédia familiar mesclada de sátira política que muito deve na sua eficácia cénica ao simbolismo do cenário imaginado pelo encenador e à justa iluminação criada por Guilherme Frazão, aos excelentes figurinos de Ana Paula Rocha e à música de Ariel Rodríguez, que bem dispensam os curtos vídeos de Cafiero e Andreia Mendrico, o mais das vezes um mero entretenimento entre cenas. Rui Monteiro

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