ESTE ESPECTÁCULO

Luís Miguel Cintra, 14 mai 2007

Habituei-me a que o meu ofício de encenador era de alguma maneira arrumar, ordenar, clarificar. Chegar a uma leitura, uma interpretação, e propô-la ao espectador. Saber ler uma peça e, com os actores, com a criação de um espaço, com a luz, pôr em cena essa leitura. E só aquelas em que a tarefa era difícil me interessaram. Reconheço agora que sempre quis encenar um pensamento, muitas e diferentes tentativas de, com uma síntese, dominar a vida, dar-lhe um sentido, clarificá-la. Era eu moço e já dizia, a propósito de As Criadas de Genet/Victor Garcia, que o teatro era metáfora. Com o passar dos anos desencanto-me de tanta presunção. E num tempo que cada vez mais reduz a vida a padrões, que cada vez mais a tipifica e a anula nas mais grosseiras catalogações, mais vontade me dá de ser capaz de trazer para o palco aquilo que nenhum pensamento consegue dominar, a nossa fragilidade, o que podemos ter de mistério, as mais pequenas coisas, toda a surpresa. E mais me apaixonam textos que me devolvam alguma humanidade, textos perfeitos, impossíveis de “encenar”. A Gaivota é assim. Não sei como se encena este teatro.

Sempre lhe tive medo, aliás. Este teatro ama demais a vida para que, em vez dela, se permita pôr em cena figuras que a expliquem ou a clarifiquem, para pôr em cena uma sua metáfora. O que quer representar é justamente o que não se representa, tudo o que é, simplesmente: a espessura da vida, as contradições dos comportamentos, os gestos sem sentido, o nosso convívio com a natureza e com os objectos, as sensações, a cor, a luz. E fala disso. Sem discurso. Com “um pequeno conto”. Uma história quase sem acção, como a vida de toda a gente, que nos mostra um grupo de pessoas numa quinta da Rússia do fim do século XIX. Em cena estão personagens que, em cima de um palco, são pessoas como nós, todos insatisfeitos, e alguns artistas, esses desesperados na sua necessidade de prender a vida com a arte, os quatro insatisfeitos também porque o não sabem fazer, todos pensando que se o fizerem viverão melhor. São tontos, estas duas actrizes, estes dois escritores. Não sabem que a arte não substitui a vida. Ou talvez tenham gasto a sua vida e a dos outros a aprendê-lo. Neste “pequeno conto” os dois escritores, Trigorin e Treplev, percebem que a vida é maior que o que escrevem. Acabam por perceber. Sem encontrar solução. O mais velho aceita a mentira, o mais novo acaba consigo para não viver mal. E as duas actrizes, Arkadina e Nina, substituem a vida pelo teatro, pela sua imitação. A mais velha para calar a infelicidade, a mais nova porque a vida não lhe correu bem. Más razões para ser artista. A peça fala de facto dessa relação da arte com a vida. Mal começa e já se discute a arte, a literatura e o teatro, a luta de novas formas contra as convenções, a busca de alguma verdade. E no último acto, ainda se fala disso, enquanto se joga o loto. Mas não sei se é a peça que fala. Falam, sim, as personagens, debatendo-se na sua dificuldade de viver e de viver com os outros. E não falam só disso, falam de amor, falam das doenças, falam do tempo, falam do dinheiro, falam da lavoura e dos animais, falam de viagens, falam das pequenas coisas. Como realmente costuma acontecer. Este teatro não organiza um discurso, faz uma genial orquestração de muitas impressões, de muitas sensações de vida, foi escrito como os impressionistas pintavam. Ou como quem escreve música. Não, não é uma síntese que se põe no palco. A gaivota não é um símbolo nem uma imagem poética. “Sou uma gaivota… Não, não é isso.” Diz a Nina, que não é afinal A Gaivota. A Gaivota é mesmo só uma gaivota, uma gaivota que Treplev matou. São as personagens que lhe inventam a simbologia, cada uma a sua, para organizar o que não é organizado. Enganam-se, que a vida é mais concreta. E enganamo-nos também se na grande cena final do reencontro, e desencontro, de Treplev e Nina, procuramos o confronto do masculino com o feminino, do desespero com a fé, do negativo com o positivo. O que está lá é muito mais do que isso. E não precisa de ser justificado. É só um pedaço de vida, da vida de duas pessoas, é uma cena de amor. Este teatro, como a vida, não se escreve com maiúsculas.

Por isso nos foge a cada passo. Reencontramo-nos a cada frase com todos os grandes temas mas enganamo-nos se os tentarmos organizar: coisas como o sentido da vida, a busca de uma transcendência, a morte e a passagem do tempo, o conflito das gerações e por aí fora, não têm mais importância do que pôr e tirar o chapéu, beber um copo de água, fumar um cigarro, dar uma gorjeta, colher uma flor ou coçar o nariz. A vida passa-se a todos os níveis e porventura mais nos que não conseguimos nomear. Ninguém vale mais que o outro, tudo conta e de tudo depende cada destino. Cada silêncio tanto como o que se diz. O infinitamente grande só se vê com um microscópio. Porque a vida é assim. Mas como se representa isto? Se a vida mesmo não é a ficção que no palco tentamos reconstruir com uma imagem?

Enganamo-nos se tentamos encontrar em Trigorin ou em Treplev, ou na filosofia do médico Dorn, o ponto de vista de um autor, do próprio Tchekov. Cada personagem tem o seu ponto de vista, se não muitos, conforme os momentos, e todos se cruzam e todos se chocam porque os homens todos pensam e a vida é feita também disso. Em cada um deles como em cada uma das outras personagens, encontraremos, evidentemente, pedaços daquilo que um autor viveu, daquilo de que se lembra, do que terá conhecido em si ou nos outros que encontrou, mas este teatro não exprime um autor, o ponto de vista deste teatro é o de quem simplesmente observa, ouve e vê, e não comenta. Gosta. Sim, como um Deus sem bem nem mal e que não fosse o Criador. Nunca de longe, sempre do lado das pessoas, com uma lucidez ou uma mansa crueldade que delas o afastam mas sempre ao nível do chão, e sem as condenar. Amando-as muito porque estão vivas. Que longe estamos de Strindberg!

Nessa lucidez, nessa afinal crueldade, nessa estranha distância, na qualidade desse olhar, estará com certeza o segredo destas comédias. A sua maior e tão discutida dificuldade. E não sei se sou capaz desse sorriso. Pior, não sei se quero. Estas comédias pedem, no seu ponto de vista, uma coragem, uma solidão, a que algum dia talvez chegue, mas que ainda me arrepia. Eu ainda choro com esta sensação de vida. Ainda não desisti de ser apaixonado. Já sinto passar o tempo mas ainda não quero chegar à idade da sabedoria.

Quero continuar do lado de dentro, com estas personagens, e não sei ainda como se consegue estar de fora ao mesmo tempo. Talvez por isso mesmo nos deu medo de fechar este espectáculo no espaço para que foi escrito, se é que foi mesmo escrito para ser teatro: o palco à italiana. Fechá-lo na moldura. A imagem não está completa. E não gostava de acabá-la.

Creio que ainda não sei encenar este teatro. O que neste espectáculo fica é um exercício que partilhamos convosco. Pensei em encenar este texto para com a Cristina me confrontar com esta escrita. Para aprender mais. E sobretudo para dar ao grupo de actores com quem tenho vindo a trabalhar, ao menos uma vez na vida, essa experiência fundamental. Porque obriga cada um a medir a sua vida no ofício de nos representar. Porque põe em causa a nossa arte. Obriga-nos a um ajuste de contas com o que estamos a fazer. A uma responsabilidade que não é “profissional”. Remete-nos para a vida toda. E a vida é mesmo maior. Um dia chega a morte.
Desabituei-me da humildade a que este teatro obriga. Que me sirva de lição.

Habituei-me a que o meu ofício de encenador era de alguma maneira arrumar, ordenar, clarificar. Chegar a uma leitura, uma interpretação, e propô-la ao espectador. Saber ler uma peça e, com os actores, com a criação de um espaço, com a luz, pôr em cena essa leitura.

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