Escutemos a voz de Krapp

A Ultima Gravação de Krapp, texto de Samuel Beckett encenado por Peter Stein e interpretado por Klaus Maria Brandauer.

Tiago Bartolomeu Costa in Público, 7 jul 2013

Klaus Maria Brandauer não dá entrevistas. Prefere guardar-se para os momentos em que, no palco, se confronta com os olhares dos espectadores. A imagem, que nos foi passada pela sua mulher, também sua agente, pode, contudo, servir de bela metáfora para o espectáculo que o actor, conhecido entre nós pelo filme África Minha apresenta em sessão única no Festival de Teatro de Almada dia 10 de Julho.

A Última Gravação de Krapp é uma peça em um acto de Samuel Beckett, escrita em 1958, e um desafio para os actores. Em cena, sozinho, apenas o actor e a sua voz. Reformulando: em cena, um actor ouve, sozinho, a sua voz. Está no dia do seu 69º aniversário e, através da sua voz gravada quando tinha 24 anos, tenta reescrever a vida e agarrar se a memórias que já nem sabe se são as suas. Sozinho face à dolorosa ideia do futuro que tinha imaginado para si em jovem, que não viveu, e que agora o obriga a agarrar se ao que nunca possuirá.

A voz jovem do homem entretanto velho surge lhe como desprezível, talvez distante. O ritual tem no corpo de Klaus Maria Brandauer uma aura epifânica, ampla e tortuosamente gerida por Peter Stein, o encenador que garante que a distância entre a voz e o homem seja cada vez menor.

Krapp gosta de comer bananas. Krapp gosta de se repetir. Krapp gosta de voltar atrás na gravação. De mentir. De inventar. De reescrever. De olhar em frente como se nos olhos dos espectadores pudesse ver a vida que está a ouvir. Peter Stein oferece a Brandauer a margem certa para o erro, o exagero, a comoção do excesso. Mostra nos a falibilidade da palavra através do corpo enorme que é o próprio em Brandaeur – aprovar cada gesto que é um dos mais importantes actores austríacos. Krapp nutre um desdém particular pelo seu eu mais novo.

A força de A Última Gravação de Krapp reside, naturalmente, no texto de Beckett, construído como se fosse uma dolorosa despedida não tanto da vida, mas de uma identidade que se forjou. Razão pela qual nada mais se pode dizer quando se é actor de tal texto. E nós ficaremos, tal como Krapp com o eco da voz de Brandauer na noite quente de Almada.

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