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Entrelinhas
Nas entrelinhas do processo de criação teatral: visão e vida
Afonso Becerra in Erreguete 19 Julho 2024 | notícia online
Uma das possíveis condições das artes em geral, da literatura e do teatro em particular, é a sua estimulante capacidade de expressão sugestiva, a sua dimensão conotativa mais do que denotativa, o facto de oferecer muitas camadas de significado, a polissemia, além do apelo a leituras nas entrelinhas.
A dupla Tiago Rodrigues e Tónan Quito trouxe ao 41º Festival de Almada, literalmente, uma experiência teatral assim titulada: Entrelinhas. Neste espetáculo podemos encontrar vários jogos muito característicos da poética de Rodrigues, próximos do gosto por contar histórias que se conectam com outras, numa dinâmica de bucle, de mise en abyme ou de Matrioska (boneca russa). Isto produz, nas entrelinhas, ecos e reflexos que multiplicam interpretações daquilo que esboçam. Aliás, na sua justa medida justa fazem com que o texto acabe numa espécie de sortilégio ou de fórmula mágica, porque a sua matéria se encontra sujeita a uma estrutura espiral e especular que nos atira para dentro dela, absorvendo-nos. Nessas histórias desenha-se outrossim um género de hipertexto com referências que se cruzam e nos levam a outros textos, aqui, em Entrelinhas, ao Édipo-Rei de Sófocles e, em menor medida, ao Quixote de Cervantes, mas também àquilo supostamente dito por Tónan e àquilo supostamente dito ou redigido por Tiago, numa criação partilhada de dois amigos de longa data – tal qual o próprio Tónan nos explica – com ambos os nomes próprios a começar pela mesma letra T, essa em que se intercetam duas linhas e que, nas origens do nosso alfabeto, parecia um X ou uma cruz.
Entrelinhas também interceta duas vidas e gosta de brincar com o biográfico, com o especular (de espelho) dos próprios eus a entrar na peça e a transformarem-se em personagens que não parecem personagens, porque a pessoa existe na realidade, nós sabemos, e até a podemos conhecer. Mas em que realidade é que existe a pessoa? Dá-se aqui um teatro especular em que as pessoas de Tónan e de Tiago saem das realidades quotidianas e íntimas que não partilham connosco, para a realidade partilhada que traça o texto e que se ativa no encontro teatral.
Nas entrelinhas de Entrelinhas também está essa conexão direta com as pessoas do público, como em By Heart, no olhar direto de Tónan, na maneira descontraída e na confiança com que nos trata. Dir-se-ia que parece estarmos como se estivéssemos com ele no palco ou até que não há palco, mas um espaço em que ele nos vem contar algo: a aventura da criação de um espetáculo supostamente falhado. Aliás, oferece-nos café, quando o prepara para ele, e até há alguma interpelação direta a uma espetadora, atribuindo-lhe, por exemplo, a identidade da filha de Tiago, que lhe abre a porta na cena em que recria a visita à casa do dramaturgo, fechado na escuridão de um quarto por causa de uma doença oftálmica. Ou, no final, quando reparte os livrinhos com o texto da peça e pede a um espectador que leia um excerto.
Estamos ante um espetáculo sobre um espetáculo que queria ser outra coisa, embora isto só seja uma ficção, um brincar, porque este, que não parece um espetáculo é, com certeza, o que os dois magníficos criadores quiseram fazer.
Há também algo de essencialista na aparência de Entrelinhas, mas só se trata de uma aparência, porque atrás do aspeto simples desta proposta cénica figuram todas as complexidades textuais e humanas que vibram nas entrelinhas. Peço desculpa por repetir tanto a expressão, mas acho que é crucial. Nunca um título foi tão eloquente no que diz respeito ao fundo e à forma de uma obra de arte, sendo que aqui o binário forma/conteúdo, como em toda a arte contemporânea, não existe, porque se trata da mesma coisa.
A ideia inicial era que Tiago escreveria um monólogo a partir de Édipo-Rei de Sófocles para ser interpretado por Tónan. Já conseguiram um teatro e até tinham marcado ensaios. “Mas, como sempre sucede, diz-nos Tónan Quito, Tiago Rodrigues está atrasado. Anuncia uma data de entrega que acaba por não cumprir, e acaba por não entregar o texto senão mesmo em cima da hora. Enquanto aguardam, os dois vão trocando ideias numa sala de ensaios, e vão bebendo café. E eis senão quando, desta vez, Tiago Rodrigues desaparece mesmo. Não responde a chamadas telefónicas, ou então marca encontros num dado café, aos quais depois não comparece. Até ao dia em que por fim aparece: traz os olhos avermelhados, diz que está com um problema na vista, que os oftalmologistas estão a tentar tratar, mas que, nas atuais condições, não pode escrever.” Este excerto extraído da folha de sala aproxima-nos desse ponto de partida relacionado com a cegueira de Édipo, com a história da avó quase-cega de Tiago em By Heart, que queria decorar o derradeiro livro que pudesse ler, e até com a clarividência do cego Tirésias da tragedia de Sófocles. O dramaturgo que perde a vista, esse sentido teórico que junto do ouvido, segundo Hegel, são os que se relacionam com o sensível na arte, e os que mantêm a distância que garante a liberdade do objeto artístico. É a liberdade e a não dependência imediata da matéria, como acontece com os sentidos do gosto e do tacto. Aliás, podemos imaginar que teatro e teoria têm uma raiz etimológica comum na palavra grega “theatron”, que quer dizer “lugar para olhar” ou “lugar de onde se vê”, porque a teoria é um conjunto de conceitos, definições e proposições relacionadas que formam uma visão. Assim sendo, para um homem de teatro como Tiago Rodrigues a questão da visão é fulcral. Para nós também. Aliás, há aqui uma dimensão simbólica muito importante, porque a visão não se produz nos olhos, mas no cérebro e porque remete para a capacidade de perceber o mundo e a alteridade, além de nos compreendermos a nós próprios. Aliás, o teatro ajuda-nos a ver.
Tónan lê-nos essa carta, intercalando as frases do preso com as falas da peça de Sófocles, que, aliás, também podemos ver projetadas na parede preta do fundo do palco. Então, o espetáculo é um palimpsesto de que desfrutamos descobrindo as conexões entre as frases da carta do recluso e as falas das personagens da tragedia, ora contrastando, ora complementando-se em surpreendentes coincidências. Esse palimpsesto acrescenta outrossim um lado de confusão e de complexidade, que reflete de uma maneira quase febril o estado da criação artística e dos seus reclusos, dramaturgo e ator. Porque Entrelinhas também trata a odisseia e a luta para ver e perceber a obra a que se pode chegar. Porque, por muito que se planifique, vai haver sempre qualquer coisa inesperada que pode mudar tudo.
Nas pesquisas ou imaginação de Tónan, na realidade o texto de Tiago, aquele vai à prisão e, quarenta anos depois, o preso que faz de bibliotecário ainda se lembra dos dois que levaram e não devolveram esse livro de Édipo-Rei de Sófocles e ainda outros, de Shakespeare, Molière, Dostoiévsky, Gogol, Ibsen ou Tchékhov. Como num romance de Kafka ou como num pesadelo do ator que, a dada altura se confunde com o autor, Tónan é conduzido pelo bibliotecário da prisão a uma cela em que estão dois velhos, um cego e o outro quase cego com o livro Dom Quixote de La Mancha de Cervantes, a escrever, nas entrelinhas da passagem em que Quixote explica a Sancho porque ama Dulcineia do Toboso, uma carta de amor à própria namorada. Tónan e nós mesmos descobrimos, finalmente, que esses dois velhos presos são Tiago Rodrigues e Tónan Quito a tentar criar um espetáculo e que, aliás, já estavam à espera da mencionada visita.
O resultado, para mim, é surpreendente e fascinante na sua aparência tão simples quanto isenta de artifícios teatrais. A subtilidade e a qualidade pessoal de Tónan Quito de estar em palco com nós, são o principal. O conceito deste teatro, feito por ele e por Tiago Rodrigues, permite que sejam importantes estes pormenores da presença real da pessoa que está connosco para partilhar uma peça artística que nos abre diversas portas e janelas, sem se situar em cima de nós, sem hierarquia, sem ostentações.
Pode haver muitas prisões na vida, assim como muitos auto-homicídios perpetrados por renuncias a viver de uma maneira plena. Mas o teatro, tal qual em Entrelinhas, acaba por nos retirar da escuridão ou, se nela, por nos oferecer uma certa luz. O fascínio que eu senti com esta peça constitui parte dessa luz.
(Agradecimento pela revisão e correção linguística à amiga Maria José Albarran Carvalho.)
Entrelinhas | HomemBala (Lisboa)
Texto: Tiago Rodrigues
Co-criação: Tiago Rodrigues e Tónan Quito
Interpretação: Tónan Quito
Colaboração artística e imagens: Magda Bizarro
Cenário, Luzes e figurino: Magda Bizarro, Tiago Rodrigues e Tónan Quito
41º Festival de Almada. Incrível Almadense. Almada, 14 de julho de 2024.