Em tempo de guerra ser enguia (ou Schweik revisitado)

Em tempo de guerra ser enguia (ou Schweik revisitado) A Companhia de Teatro de Almada volta a mostrar-se à altura da sua história no domínio do musical com esta abordagem de Nuno Carinhas a uma peça rara de Bertolt Brecht

Manuel Pedro Ferreira in Público 24 Outubro 2023 | notícia online

Chegou a Almada mais um Brecht, mas um Brecht quase desconhecido, representado anteriormente em Lisboa só numa ocasião, há quase meio século, pelas mãos de Raul Solnado. A peça Schweik na Segunda Guerra Mundial teve uma longa gestação (1943-1956) e acabou por chegar à cena em 1957, já depois da morte do dramaturgo, continuando a ser ampliada pelo seu colaborador musical, Hanns Eisler, até 1961. Inspira-se em O Bom Soldado Svejk, romance do checo Jaroslav Hašek sobre as aventuras e desventuras de um pobre-diabo cheio de lábia, notável na capacidade de sobreviver, dobrando a espinha de modo tão caricato que deixa expostas a miséria da população e a opressão de que é vítima, sem que o maior poder seja poupado ao ridículo.

Esse maior poder surge aqui identificado com o nazismo alemão na fase final da guerra. Sim, é verdade: Hitler comparece, de maneira chaplinesca, como personagem teatral, permanecendo embora, até à cena terminal, na sua própria bolha de convencidas “altas esferas”, corroídas pela dúvida sobre a adesão do homem comum à sua ideologia assassina. Não se tratando de uma comédia, mas de uma sátira, perpassa pela peça um humor negro que se casa na perfeição com o carácter pícaro de Schweik, cuja caracterização beneficiou da experiência de Hašek quer como vendedor de cães, quer como soldado durante a Primeira Guerra Mundial.

A presente produção da Companhia de Teatro de Almada, feita com meios limitados, consegue imprimir à peça um ritmo e uma leveza que fazem passar num ápice as duas horas de duração. Na verdade, a sétima cena, em que Schweik dialoga longamente na cela da prisão com uma multitude de personagens, foi cortada, salvando-se uma canção e uma versão instrumental da Marcha da Carneirada. Na última versão proposta por Eisler, a música conta com 25 números, entre canções, diálogos cantados e interlúdios instrumentais, quase à maneira de uma opereta; só que a sua realização integral teria implicado a presença de uma verdadeira orquestra, mais coro e solistas. Enquanto não chega o dia em que os orçamentos e as parcerias artísticas tornem isto possível, a opção de reter somente as 14 canções e de fazer reduções da partitura para um pequeno conjunto de câmara (arranjo de Jeff Cohen para clarinete, trombone, acordeão, percussão e piano) é muito compreensível.

A execução musical, liderada ao piano por Francisco Sassetti, foi impecável, tendo o conjunto introduzido, da sua lavra, alguns momentos musicais de curta duração. A substituição da tuba por um trombone como instrumento associado a Schweik, diluindo o carácter bufo numa sonoridade mais sóbria e consentânea com o seu afiado linguajar, foi uma opção do encenador Nuno Carinhas, tal como a citação de Wagner tocada ao piano pelo sargento das SS no quartel-general da Gestapo.

A encenação tem o dom da simplicidade aparente, conseguindo, apesar da permanente fixação do conjunto instrumental à esquerda do palco, junto à Taberna Ao Cálice (que o texto activa de vez em quando), uma ocupação movimentada e variada da zona restante, incluindo o fundo, com mudanças de cena quase imperceptíveis de tão fluidas (com uma casita, uma guarita e um banco de jardim a bastarem para sugerir o lugar) e fácil integração errante dos “interlúdios das baixas esferas”. Já os momentos de diálogo nas “altas esferas” entre Hitler e os seus sequazes são captados em filme e projectados, com grandes planos dos actores, sem os adereços sugeridos em didascália (globos e tanques monumentais, mapas de campanha).

Embora Brecht tenha indicado que estes interlúdios deviam incluir música militar e ser ao estilo de contos de terror (uma indicação captada pela orquestração de Eisler, com harmonias dissonantes em violoncelos e contrabaixos), Carinhas serve-se do contraste a preto e branco, da escala desmesurada dos rostos (transposição dos tamanhos descomunais sugeridos por Brecht) e do artificialismo da escrita em verso para criar um distanciamento irónico: clave diversa, menos emocional, menos negra, mas não menos eficaz.

Um dos desafios desta produção é o tratamento das canções de Eisler, que não são meros apêndices à acção, antes constituem sua parte integrante. A tradução de António Sousa Ribeiro fornece uma excelente base, logrando transpor os poemas para um português escorreito, rimando sem esforço. A sua adaptação musical, não sendo fácil, é igualmente conseguida, sem os atropelos prosódicos que, não raro, ferem esforços semelhantes. Resta a música: apesar da sua acessibilidade em âmbito e idioma, as melodias não têm uma construção evidente (sendo pontuadas por saltos, melismas e cromatismos) nem se apoiam em pilares harmónicos corriqueiros; a mestria do compositor requer dos actores um esforço particular de interpretação e memorização.

Diga-se de passagem que a Companhia de Teatro de Almada tem alguma tradição na incorporação do canto nas ferramentas do actor. Fomos muitas vezes surpreendidos pela competência canora demonstrada, especialmente tratando-se de vozes ainda frescas, e, melhor ainda, ouvidas em proximidade, na Sala Experimental. A Sala Principal, requerendo maior projecção sonora, aumenta a exigência. Apesar disso, os actores corresponderam geralmente ao exigido, com uma dicção cuidada, mesmo na canção em duo polifónico Henrique dormia.

A grande figura da noite foi, claro está, Schweik, interpretado por Ivo Alexandre com uma verve e um à-vontade extraordinários, que a sua figura ágil mas avantajada, à Sancho Pança, acabou por sublinhar; no canto, esteve irrepreensível. O papel feminino mais importante, a Senhora Kopecka, foi desempenhado por Teresa Gafeira com a elegância, a expressividade e a segurança que há muito lhe conhecemos, mas também com uma voz granulosa que se ressentiu na aproximação aos agudos. Do restante elenco, invariavelmente competente, distinguiu-se Luís Madureira no papel não-cantante de Hitler, personagem que recebeu uma inflexão vocal auto-encantatória, de alguma forma alucinada, completamente ajustada ao mundo cruel das “altas esferas”. Por todo o espectáculo, a Companhia de Teatro de Almada mereceu cada um dos amplos aplausos com que, na estreia, foi brindada pelo seu público.

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