Em companhia

Festival de Almada e os 50 anos da Companhia de Teatro de Almada. Datas memoráveis

João Carneiro in Expresso, 02 Julho 2021

Este ano, o Festival de Almada realiza a sua 38a edição; é, como todos os anos, em julho, e mesmo no ano passado, jogando contra os desastres da ecologia, o festival realizou-se. Este ano a Companhia de Teatro de Almada faz cinquenta anos. Durante o Festival haverá um ciclo de conversas em torno desta história; Eugénia Vasques, José Mário Silva, Teresa Albuquerque e Carlos Vargas são algumas das pessoas que nelas participam, e que as vão tornar vivas e participativas com os outros intervenientes. Este ano, também, a Companhia estreia dois espetáculos: “Hipólito”, de Eurípides, com encenação de Rogério de Carvalho; “Um Gajo Nunca Mais é a Mesma Coisa”, com texto e encenação de Rodrigo Francisco, o diretor artístico do Teatro Municipal Joaquim Benite, da Companhia de Teatro de Almada e do festival.

Este ano, ainda, o festival inclui na sua programação um espetáculo que se chama “Duas Personagens”. O texto original, em inglês, é “lhe Two-Character Play”, e o autor é Tennessee Williams. Como o título sugere, é uma peça com duas personagens, para dois atores, neste caso duas atrizes, Carla Galvão e Sara Castro; são delas, também, a direção artística e a encenação do espetáculo. É uma história de dois irmãos, que são atores, que têm uma companhia de teatro, e que se veem sozinhos, num teatro, abandonados por todos os elementos da companhia. Vão representar, mesmo assim. Tennessee Williams professava um afeto especial por esta peça, que lhe levou muitos anos a escrever, e que passou por diversas versões, desde a primeira vez que foi representada, em 1967; teve até outro nome, “Out Cry” – cada um poderá entender como gostaria de traduzir tão sintético, denso e expressivo título. A peça cruza mais do que uma narrativa, sabe-se que eles vão representar uma peça, vemos essa peça ser representada, e a partir daqui tudo se complica. A extraordinária carpintaria dramatúrgica de Tennessee Williams dá a ver o que pode ser a sombria loucura das existências humanas sozinhas no mundo, ao abandono; sem companhia, apesar de serem duas pessoas.

Por muitas razões, ter uma Companhia de Teatro, mantê-la durante cinquenta anos, é obra. “Hipólito” e “Um Gajo…”, cada um à sua maneira, retratam momentos de loucura de seres a que já só resta a sua própria companhia, sejam eles Fedra, em “Hipólito”, ou os antigos combatentes da guerra colonial, em “Um Gajo….”.

Mas há mais. Viviane de Muynck, realizando um desejo que expressou num dos festivais em que esteve presente, vem representar “Molly Bloom”, o final de “Ulisses”, de Joyce, um dos monólogos mais famosos da literatura e do teatro, com a cumplicidade do seu encenador e amigo Jan Lauwers; Ivo van Hove e Hans Kesting, encenador e ator, apresentam o texto de Édouard Louis “Quem Matou o meu Pai”, ou cenas da violência familiar quotidiana, a que podemos acrescentar a homofobia e o racismo de “História da Violência”, do mesmo autor, na encenação de Ivica Buljan.

O festival nunca foi temático, o que não quer dizer que seja indiferente a temas e motivos, que percorrem os espetáculos. África, violência, feminismo, homofobia, poder e corrupção atravessam várias das criações presentes este ano. “Aurora Negra”, de Cleo Diára, I. Zuaa e N. Yracema; “Tierras del Sud”, da dupla Azkona&Toloza; “Corpo Suspenso”, de Patrícia Couveiro e Rita Neves; “Lorenzaccio”, de Alfred de Musset, encenado por Rogério de Carvalho, são alguns exemplos. E há a dança, com “Omma”, de Josef Nadj; com “Planeta Dança”, de Sónia Baptista; e com “O Canto do Cisne”, de Clara Andermatt. E há “Maria Callas — Cartas e Memórias”, de Tom Volf, com Monica Bellucci. Há mais: são 21 espetáculos, sem contar com tudo o resto. • A história, escrita por Kleist pouco antes de morrer, em 1811, passa-se nos finais do século XIV. Ao princípio da noite, o duque de Breysach regressava ao seu castelo quando foi atingido mortalmente no peito por uma flecha. As tentativas para descobrir o autor do assassínio acabam por conduzir ao meio-irmão do duque, o conde Jakob Rotbart. Para provar a sua inocência, o conde Rotbart tem de dizer onde se encontrava no momento fatal; segundo ele, nos braços de Littegarde von Auerstein, uma viúva de reputação “irrepreensível e imaculada”. Ao saber da acusação, o pai de Littegarde morre de imediato, e os irmãos expulsam-na de casa. Em desespero, Littegarde recorre ao seu fiel apaixonado, o camareiro do duque assassinado, Frederico von Trota; este, na sequência dos acontecimentos, acaba por desafiar Jakob Rotbart para um duelo. A fé do camareiro na inocência de Littegarde é inabalável, e só o juízo divino, através da vitória no duelo, poderá decidir a questão. A partir deste momento, os fios de uma narrativajá complexa adensam-se, fazendo diferir a solução da questão numa intriga cada vez mais complicada. Carlos Pimenta, que encena o espetáculo, tinha sentido já as potencialidades dramáticas deste texto. Maria Filomena Mónica, entretanto, traduziu o texto e construiu a partir dele uma dramaturgia que articula elementos do conto original com o seu próprio comentário, quer sobre o texto, quer sobre Kleist. São convocados, também, outros autores, nomeadamente Clemens Brentano e Caspar David Friedrich, confluindo todos estes materiais numa leitura e numa recriação interpretativa cuja densidade é acentuada pela forma de monólogo conferida ao espetáculo. A interpretação é de Miguel Loureiro. / J.C.

Monólogo de uma mãe, “num tom de comédia agridoce”, sobre a perda de um filho e a reconciliação com o mundo e com a vida. Uma produção da companhia Dois, com encenação de Ivo Alexandre e interpretação de Anabela Faustino.

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