Duas Histórias Italianas

dramaturgia italiana aberta pelo Festival de Teatro de Almada

Um polícia quer saber o nome do criminoso antes dos noticiários da noite, mas ainda nem sabe a identidade da vítima. Um trabalhador escreve à mãe e acaba relatando a ascensão e queda da sua cultura, agora que é a hora da morte do proletariado. Parece uma charada, mas estes enredos são antes uma passagem para a desenvolta dramaturgia italiana aberta pelo Festival de Teatro de Almada.

Para alguém estrangeiro à produção teatral na Itália de 2000, as peças de Fausto Paravidino e Ascanio Celestini (ambas de 2001) são uma descoberta agradável e estimulante. Mais ainda quando se percebe serem elas apenas duas faces de um prisma, isto é, duas das várias escritas teatrais que se ensaiam autonomamente pelos teatros do país – com a vantagem adicional de entre “Natura Morta in un Fosso” e “Fabbrica” não se encontrar filiação, antes diferentes formas de ver e representar os pedaços de vida a que se dedicam.

A teia que une “Natura Morta in un Fosso”, urdida como um policial negro, coloca o Rapaz, o Polícia, a Mãe, o Passador, o Namorado e a Puta no mundo das coisas que não esperavam… mas que acontecem. O ponto de vista de cada uma das personagens é utilizado por Paravidino no desenvolvimento do entrecho como um instrumento eficaz, que leva a investigação policial e a narrativa até ao seu porto, ao mesmo tempo que recorre às peripécias do percurso para caracterizar as personagens, acrescentando humanidade (e alguma miséria) ao que inicialmente não parece mais que o traço grosseiro de uma caricatura. Definitivo para o funcionamento deste dispositivo é a segurança da encenação de Serena Sinigaglia e o excelente trabalho do único actor em cena.

Fausto Russo Alesi cria, com cuidadosa minúcia, através de pequenos gestos, discretos esgares, uma determinada forma de movimentar o corpo, uma inclinação da cabeça, ou um singelo xaile sobre os ombros, personagens críveis, a bem-dizer indivíduos. Através delas, na consistência da sua interpretação, Alesi representa exemplarmente as muitas matizes do comportamento e revela a intenção do dramaturgo, que se apropria da estrutura do policial para expor a perplexidade, a interrogação existencial, os conflitos dos sentidos perante a crise desencadeada pela morte, ou pela violência da vida e o seu absurdo.

“Fabbrica”, por sua vez, trata de uma época em que os operários eram gigantes. Um tempo em que criavam, através do trabalho, riqueza para outros e, para si, uma cultura dinamicamente criativa e uma razão para existir. A automatização primeiro, a economia global depois, deixaram a fábrica à beira da extinção nos países desenvolvidos. O proletariado perdeu a sua instituição – o seu centro – ainda antes de desaparecer. Ascanio Celestini podia escolher várias abordagens, mas preferiu encenar e interpretar um monólogo demencial. Através da vida de três Faustos, três gerações de uma família de trabalhadores, desfilam as lutas contra o capitalismo e o fascismo; expõe-se a dor de ver partir os seus, derrotados pela eficácia das máquinas. Eles dão a conhecer os desapontamentos e as alegrias da sua classe, as vitórias e as derrotas, mas também as fantasias, os mitos, os desejos sublimados de personagens por vezes bizarras, por vezes surrealistas. Nobres e generosas umas, cruéis ou simplesmente oportunistas outras, sempre personagens que já só existem em recordações, ou na inspirada visão de Ascanio Celestini – que assim as devolve à memória colectiva.

Uma combinação ardilosa de técnicas narrativas com investigação antropológica, como parece ser hábito do autor, cria em “Fabbrica” um fresco sobre meio século de História italiana na forma de uma carta que um operário escreve à mãe. É um longo monólogo, recitado a um ritmo estonteante, aqui e ali complementado por vozes gravadas que asseguram a fidelidade narrativa. É também uma opção cénica que facilmente podia deslizar e perder-se em vulgar exercício de estilo sobre a oralidade – até porque o dramaturgo recorre com frequência ao colorido dos dialectos locais -, mas que a intensa interpretação de Celestini transforma numa espécie de melopeia hipnótica, onde as palavras se tornam melodias encantatórias.

Rui Monteiro
in Público, 13 jul 2004

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