duas histórias de risos e de medos em espanhol

Festival de Almada

Título. Ni Sombra de lo que Fuimos
Autor. Eusebio Calonge
Encenação. Paco de La Zaranda
Intérpretes. La Zaranda
Local. Palco Grande
Título. La Brisa de la VIda
Autor. David Hare
Encenação. Lluís Pasqual
Intérpretes. Amparo Rivelles e Nuria Espert
Local. Teatro São Luiz

Duas produções espanholas inauguraram, da melhor forma, a 21.ª edição do Festival de Almada. A companhia andaluza La Zaranda apresentou Ni Sombra de lo que Fuimos (2002), espectáculo que, estreado em vésperas de o colectivo completar 25 anos de existência, inscreve no próprio título a intenção de reflexão / valorização do seu percurso.

Ao invés da desilusão nele insinuada, verificou-se que a «naturalização» do absurdo que o grupo vem experimentando atingiu aqui um absoluto rigor expressivo e uma inquietante actualidade ética. Descarnando-se o que caracteriza uma feira pobre (esqueleto feérico de um carrossel, onde resta um só cavalo, e uma estreita caixa de bilheteira semelhante a um esquife), constrói-se uma poderosa metáfora cénica da circularidade: daquela que levou o grupo à depuração da sua linguagem e daqueloutra em que se enreda uma sociedade sem rumo. O trabalho de actor é aqui apenas mais um elemento – a par do movimento do carrossel, dos objectos, da charanga andaluza, do canto – que nos envolve numa perturbadora espiral, onde o absurdo que nasce apenas da linguagem se vê potencializado por uma linhagem de «monstruosidades», tão lancinantes como irresistivelmente cómicas, que se filia nos anões de Velásquez, nos caprichos de Goya, nas enormidades de Valle-Inclán, no desvario folclorizante dalgum García Lorca.

ACTRIZES. A peça The Breath of Life (2002) inicia-se com a visita de Frances Beale, romancista light de sucesso, a Madeleine Palmer, retirada na ilha de Wight (Sul de Inglaterra). Antes de percebermos o que liga as duas mulheres – afinal, durante 25 anos, Frances fora mulher de Martin e Madeleine sua amante -, David Hare inscreve, no discurso desta última, uma aversão à ficção que se pode ler como chave da intriga e da sua arquitectura dramática. Opondo a sua autêntica liberdade de amar Martin à institucionalização dos afectos ficcionada por Frances, Madeleine indicia que o dramaturgo britânico prefere a «verdade» das personagens à sua diluição em desinteressantes estereótipos romanescos.

Este diálogo sagaz foi agora interpretado pelas consagradas actrizes espanholas Amparo Rivelles e Nuria Espert. Trabalhando sobre a conseguida e saborosa versão castelhana de Nacho Artime, ambas surpreenderam pela inversão das respectivas imagens. A veterana Rivelles construiu a inconformista e libertária Madeleine com notável parcimónia, numa dureza próxima do sarcasmo, e a avassaladora Espert defendeu uma Frances burguesinha, tão titubeante como matreira. Tornando-se claro que Martin as derrotou, fugindo com uma rapariga mais nova, é impressionante como as duas actrizes, num subtilíssimo jogo de variações e contrastes de gesto e de voz, reformularam incessantemente a contida, mas quase galante, reescrita das suas memórias amorosas, políticas e domésticas.

Se Pasqual obteve de ambas a genial concretização do paradoxo de Hare – brincar, à maneira de Wilde ou de Shaw, com a «realidade» de uma sofisticada ficção -, pareceram-me banais as suas escolhas de enquadramento (cenário naturalista de gosto duvidoso, iluminação confusamente psicologizante, previsibilidade dos separadores musicais, colhidos nos hits dos anos 60, e incompreensível movimentação de adereços).

Miguel-Pedro Quadrio
in Diário de Notícias, 14 jul 2004

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