Dois homens num balneário não tem de ser uma ficção homoerótica

Un Poyo Rojo não é o típico engate locker-room com que a pornografia gay construiu todo um imaginário, todo um género. A paisagem corporal, aqui, é mais paródica do que homoerótica — mas alguma coisa muito funda, muito universal, sai do armário neste espectáculo argentino entre o teatro físico e a dança contemporânea que agora chega ao Festival de Almada.

 in Público, 9 Julho 2019 notícia online

Em 2008, quando Nicolás Poggi e Luciano Rosso, então “uns miúdos”, começaram a preparar um número de 15 minutos para o serão mensal de variedades do Laburatorio – o centro cultural alternativo de Buenos Aires onde encontraram uma segunda ou mesmo uma primeira casa –, não lhes passava pela cabeça que 11 anos depois ainda estariam a escorrer gags, suor e testosterona no vestiário de ginásio ou de clube de bairro onde a história que nessa altura ainda era a deles, a da atracção de um homem por outro homem, se fixou numa forma teatral lapidar, num mega-sucesso que poderíamos dizer planetário, atendendo a que estamos em 2019 e Un Poyo Rojo continua a subir ao palco, na Argentina e fora da Argentina, a um ritmo de 60 a 200 apresentações por ano.

A vida conjugal que Luciano e Nicolás tinham em 2008 desfez-se entretanto, mas Un Poyo Rojo, a peça com que o homónimo colectivo argentino se estreia na quinta-feira, dia 10, no Festival de Almada (Palco Grande da Escola D. António da Costa, às 22h), sobreviveu a esse e a muitos outros acidentes de percurso. Por exemplo: à súbita baixa de Alfonso Barón, o intérprete que nos últimos oito anos substituiu Nicolás, e que o próprio Nicolás, num volte-face cheio de justiça poética, agora substitui.

O sonho de Hermes, talvez o sonho de qualquer encenador, é continuar a fazer Un Poyo Rojo “para sempre”, mesmo que venham outros tomar-lhes os lugares. No México, revela Nicolás, há interessados em comprar os direitos da peça, e a ideia é autorizar novas montagens – se não for antes, quando “os originais” deixaram de poder fazer o espectáculo. “Para mim, que vi a versão original, depois a versão acabada, que se tornou um trabalho muito pessoal do Alfonso, e agora o regresso do Nico, é incrível. Eles não fazem de todo as mesmas coisas e no entanto eu seria incapaz de escolher entre uma e outra”, resume o encenador, que acredita que esta transmissão forçada pode ser a chave para que Un Poyo Rojo transcenda as quatro vidas que lhe deram vida até hoje e se torne o “clássico” que no fundo talvez já seja. Onze anos é bem capaz de ser o que Nicolás quer dizer com “forever”.

De homossexual a homofóbico

O “novo” final de Un Poyo Rojo, outro efeito forçado da vida na estrada, é um exemplo das transformações que a peça sofreu para se manter funcional – e de como com isso ganhou sentidos que talvez não estivessem previstos na versão original de 15 minutos, um segmento que até hoje se mantém e que parte da cumbía En tu pello, uma canção “muito popular, de bairro, mesmo para dançar, nada intelectual” de Lía Crucet. Os dois homens que inicialmente se escondiam, porque o que acontece no armário fica dentro do armário, agora expõem-se à frente dele, à nossa frente, e tudo por causa de uma paragem do espectáculo em Barcelona, onde o cacifo que a produção lhes cedeu não tinha as características necessárias para a cena final.

“A peça mudou muito quando decidimos que em vez de entrarem no armário e fecharem as portas os dois protagonistas dariam um beijo. Tornou-se então mais claro o facto de serem duas pessoas num ritual de sedução; até aí, era sobretudo um jogo, uma competição”, sublinha o encenador. Os dois homens que se enfrentam, que se desafiam, que competem, que se atraem, que se recusam, são projecções dos miúdos apaixonados que Nicolás e Luciano eram em 2008. Hermes, que vivia com eles em Buenos Aires quando começaram a ensaiar o seu número de cumbía desconstruída, viu a estrutura coreográfica com a qual queriam obrigar a dança popular e a dança contemporânea a suarem juntas num balneário, e sugeriu-lhes que incorporassem nela “o vínculo íntimo, real” que havia entre os dois, e “todos os jogos” que faziam parte dessa relação.

O balneário apareceu por acaso, porque era preciso mudar de roupa e os cacifos davam jeito (só mais tarde o encenador, nada versado “em cultura queer”, percebeu que o locker-room é todo um género de pornografia gay): os primeiros materiais para a pesquisa foram as imagens de lutas de galos que Nicolás e Luciano encontraram no YouTube, das quais partiram para outras figurações da masculinidade vindas do desporto mas também dos lugares onde se dança (a rua, o salão de baile, a discoteca, até as escolas de ballet, onde detectaram formas particularmente agressivas de competição). “Andávamos à procura dessa coisa do macho: como ocupam o seu lugar, como cacarejam entre si, como lutam pelo poleiro. Mas também da energia mais sensual da atracção e da repulsa, da testosterona dos ambientes desportivos, de danças populares como o merengue e a cumbía. Usámos todos esses materiais, mas deformámo-los”, explicam Nicolás e Luciano.

O homoerotismo, se já existia, nunca foi importante para o encenador. “Para mim, Un Poyo Rojo é a história de dois seres que se desejam: não me interessa se são homens ou mulheres, até podiam ser uma planta e um cão. Isto não é um manifesto homossexual, mas o público pode fazer as leituras que entender: somos quatro e cada um tem uma visão diferente. Quando apresentámos a peça em Rafaela, cidade conservadora de província, na noite a seguir à aprovação do casamento homossexual na Argentina [2010], que aliás festejámos no carro, às 4h da manhã, foi uma emoção incrível: homens do campo vieram abraçar-nos no fim, comovidíssimos, ‘parabéns, meninos’. Mas também já nos disseram que a peça é homofóbica; em Espanha, por exemplo, um grupo de gays cristãos acusou-nos de ridicularizar os homossexuais”, conta Hermes. E não é verdade que a peça trabalha em cima dos estereótipos da homossexualidade? “Não são estereótipos, é a realidade, é mostrar o que é. Não para criticarmos, mas para nos rirmos de nós mesmos, da condição humana, do ridículo que todos somos às vezes: homossexuais, políticos, modelos, transexuais. Mas nos últimos tempos sinto que há um controlo ideológico cada vez mais restritivo: já não se pode brincar com nada, tudo é discriminatório.”

Ser homossexual na América Latina, diz Nicolás, também pode significar um monte de coisas diferentes: o que se faz com normalidade no México, onde “os gays andam de mãos dadas na rua, como gesto de casal”, ainda é impossível na Argentina, onde a violência homofóbica parece estar para durar. No meio disso, o riso é um dos meios que têm à disposição, como intérpretes, para não ficarem “no lugar muito solene e muito longínquo” que teria privado Un Poyo Rojo da sua capacidade para falar a um público universal. “Há sempre duas ou três pessoas que têm um discurso mais dogmático e que vêem aqui coisas feias, mas a regra é uma reacção muito calorosa. Especialmente quando há crianças na plateia: como imediatamente se riem, os adultos relaxam e deixam de procurar agendas mal-intencionadas”, relata Hermes.

As crianças, acrescenta Luciano, “vêem caricaturas, vêem o Bugs Bunny e a Pantera Cor-de-Rosa”. Talvez seja aí, nesse universo paralelo da comédia mais instintiva, mais pura e dura, que devamos procurar este dois galos vermelhos.

O Ípsilon viajou a convite do Festival de Almada

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