Doidos muito lá em casa

entrevista a Alexandre Delgado

Só o adiamento da produção do CCB impediu que agora estivessem simultaneamente em cena duas óperas de Alexandre Delgado: O doido e a morte, na nova criação da Companhia de Teatro de Almada, e A rainha louca, segunda proposta operática do compositor português, cuja estreia, prevista para Maio deste ano, foi protelada para o início de 2010.
Em casa do compositor, esta conversa sobre O doido e a morte começa, pois, com a partitura d’A rainha louca à vista. Dezasseis anos após a estreia, na Lisboa’94, da ópera que Joaquim Benite decidiu voltar encenar – na segunda parte do espectáculo onde também se assistirá à peça de Raul Brandão em que Delgado se inspirou -, quis conhecer melhor a génese de uma obra que permitiu a Carlos de Pontes Leça vaticinar que «com esta sua primeira incursão no género, [Alexandre Delgado] prometeu ter capacidade para vir a ser o melhor compositor português de ópera depois (e a par) do seu mestre Joly Braga Santos»

N’A rainha louca vai escrever também o libreto, como fez n’O doido e a morte? Pergunto-lhe, porque não é uma opção comum…
Eu vou fazendo o libreto à medida que componho. Escolho um texto de que gosto tal como ele é, embora haja sempre pormenores que é preciso alterar por razões musicais. No caso d’O doido… fiz mais adaptações e mudanças – inevitáveis, para a farsa de Raul Brandão encaixar em estruturas musicais – do que estou agora a fazer n’A rainha louca, que é quase ipsis verbis o texto da peça de Miguel Rovisco [O Tempo feminino, de Trilogia Portuguesa, 1986]. Só mudo nos casos em que é indispensável, mas, às vezes, há palavras que ficam horrorosas cantadas, coisas que metricamente não funcionam, não se conseguindo arranjar uma melodia para certas estruturas frásicas.
Sentiu essa dificuldade relativamente à peça do Brandão?
Em alguns pormenores, sim. Em certos casos arranjei soluções musicais cómicas, reforcei um pouco o lado humorístico. Enquanto na maior parte dos casos encurtei o texto da peça, aumentei muito a cena da Aninhas, por exemplo, porque me pareceu importante e precisava de mais texto: é o clímax em termos de comicidade, é o momento mais hilariante da ópera e da peça também. Quis atingir um certo delírio e fazer quase uma cena rossiniana, entre Rossini e o vaudeville…
Para além de alterações cujo jogo me parece evidente – como a transformação de dramaturgo em compositor do governador civil – há duas mudanças na sua ópera que me parecem significativas: a importância que o Nunes ganha na «Primeira variação» (mais discreta no texto de Brandão); e, exactamente, a transformação da cena da Aninhas, em que se acentua a venalidade da personagem, que, no seu libreto, surge a pedir o livro de cheques.
Bem, no caso do Nunes, embora eu tenha aumentado um pouco a sua presença, serve para catapultar as reacções do governador, por exemplo na sua grande valsa, o momento em que diz que é um homem de génio incompreendido num país que é uma selva. A insistência nas intervenções do Nunes aumenta essa irritação e faz com que ele seja obrigado a explodir musicalmente…
Já que falou em Rossini, e a propósito da citação d’O trovador que se ouve no momento em que o governador civil compõe a sua ópera, haverá nessa remissão – tal como acontece n’O barbeiro de Sevilha, de Rossini – alguma ironia face a determinado modelo operático?
Não, confesso que não, eu adoro Verdi. Nesse caso escolhi O trovador porque é talvez uma das óperas com o libreto mais absurdo na história da ópera. A citação musical corresponde ao momento em que a cigana está a dizer que queria atirar o bebé que raptou para a fogueira, mas enganou-se, atirando o seu próprio filho! É uma coisa tão disparatada que só a música do Verdi consegue tornar aceitável. E também é um momento melodramático que me pareceu encaixar bem no texto da ópera que o governador está a escrever.
E porque é que transforma completamente a sequência de Aninhas?
Porque era preciso dar-lhe mais importância vocalmente, queria que fosse um papel de coloratura, um papel exuberante vocalmente, e na peça é demasiado curto. E embora esse pormenor do cheque não estivesse no original, percebe-se que a mulher não era grande peça, pois assim que vê o marido em dificuldades quer é que ele morra sozinho e que a deixe em paz. Eu só carreguei um bocadinho nas cores para tornar a cena mais cómica e justificar esse delírio vocal.
Isso é interessante, porque depois de ler o libreto e ouvir a ópera fica-se com a sensação de que esse lado cómico prevalece no seu trabalho.
Sim, mas a minha ópera também tem o lado trágico. Por acaso, esta vai ser a quarta produção inteiramente nova, e em nenhuma das anteriores exploraram plenamente esse lado trágico. Tanto na peça como na ópera há momentos que o sr. Milhões está a falar completamente a sério, são momentos que devem surgir como um murro no estômago, uma coisa angustiante e pungente. Eu carreguei nesse aspecto, pois gosto de ir aos extremos, tanto num sentido como no outro. Reforcei o lado cómico, e, musicalmente, explorei um pathos nos momentos sérios, que não sei se corresponde ao que o Brandão imaginava, acho que há na peça uma certa oscilação entre o expressionismo e o existencialismo.
E na sua leitura, como é que leu esse expressionismo, embrionário da peça de Brandão?
O tipo de música que escrevo não é propriamente expressionista. E embora a peça tenha ingredientes expressionistas, não acho que sejam determinantes (O gebo e a sombra tem muito mais essa marca). N’O doido e a morte há um certo lado prosaico, terra a terra, que justamente é contraposto com o lado sublime, visionário, trágico, da injustiça do Mundo. Essa justaposição entre o prosaico e o sublime, o cómico e o trágico, é que me parece marca fundamental da peça, que não sei se será propriamente expressionista, já que o expressionismo acentua muito o lado retorcido, psicanalítico, das angústias internas. Aqui não sei se é tão desfigurado, sinceramente, porque, apesar de tudo, aquilo que eles estão a dizer são coisas perfeitamente possíveis, no gabinete de um governador civil dos anos 20, em Portugal.
E há um evidente escopo de alta comédia…
Sim, claro, a história básica de O doido e a morte é uma anedota, uma história que se conta para fazer rir, de um homem importante que sofre até cair na abjecção total, por causa de um maluco que o enganou e que, em vez da bomba com que o ameaça, traz apenas uma caixa com algodão… E, depois, a tirada final – «Ai o grande filho da puta!» – que tanto escândalo provocou, é quase uma bofetada prosaica, vulgar…
Quase um bocadinho revisteira.
Sim, esse lado é muito interessante, porque faz descair a peça da tragédia em que se estava a situar. Eu gosto muito disso, a peça não se leva demasiado a sério, e aquela tirada no fim é feita para desmontar o que houvera de transcendente. De repente desfaz tudo com uma simples frase, e põe toda a gente a rir.
Aliás, essa desconstrução musical permanente é evidente na sua ópera.
Exactamente, e justificando o lado estritamente de que é uma ópera e não uma peça de teatro, cada instrumento da orquestra – não é uma orquestra, mas um pequeno grupo instrumental – é, de certa forma, como um actor. Todas as partes instrumentais são muito individuais, ou seja, não é uma orquestração no sentido tradicional, em que se escreve primeiro a música e depois se orquestra; esta foi muito mais pensada em função de cada instrumento, cada um tem um papel próprio, uma psicologia própria, como se fossem outras personagens em cena. Até fiz essa sugestão a alguns encenadores, para que encarassem os instrumentistas como se fossem actores, tal como os que cantam e representam. Por exemplo, naquela cena em que se atinge o máximo da barulheira, quando o Nunes está aos gritos com o governador civil, gostaria que o Nunes olhasse horrorizado para a orquestra, como que a dizer: «mas o que é que esta gente está aqui a fazer, que barulho insuportável!»
Uma coisa interessante é que há uma progressiva articulação dos instrumentos entre si, de uma zona caótica para uma zona harmoniosa.
Há um contraste especialmente grande entre esses momentos de delírio, esses momentos mais loucos, e depois os momentos sérios, que são momentos mais depurados, muito mais baseados em acordes; sobretudo na «Quarta variação», quando o sr. Milhões diz «Aqui há tempos, faz exactamente um mês, quando passeava à tarde sob as árvores do meu quintal, senti de repente que se me abriam os segundos olhos», a música que ele começa a cantar é uma música meditativa, muito diferente de tudo o resto – embora desenvolva algo que já estava no «Prólogo» da ópera. Prólogo esse que é o embrião de tudo o resto, uma espécie de representação do caos do mundo, cada um por si, com a sua loucura, que vai somando, e vai soando até gerar o caos absoluto…
Há uma espécie de explosão final, não é?
Isso nota-se no epílogo, onde se atinge o delírio da velocidade: é como se revisitasse tudo o que aconteceu durante aquela meia hora, a uma velocidade supersónica. Aliás, um dos críticos alemães disse isso bem, quando definiu a ópera como um accelerando contínuo, com duas pausas apenas: a Quarta e a Oitava Variações, os dois momentos sérios do sr. Milhões. Tirando isso, é sempre a acelerar.
Mantém, então, a leitura de Brandão em que o sr. Milhões se sobrepõe, apesar da sua loucura.
Acho que o sr. Milhões é um alter-ego de Raul Brandão, uma figura trágica com que ele se identifica claramente…
Aliás, a questão dos bombistas não era nada que não passasse pela cabeça das pessoas, naquela época. Há, na peça, um jogo de expectativas com a questão dos anarquistas…
Era uma questão que estava ao rubro. Os primeiros anos da República são de caos total e absoluto, os governos duravam dias, as greves e os atentados sucediam-se. Isso é que explica que o Estado Novo pareça ter caído do céu, como alguma coisa que vinha repor a ordem.
E por que é que escolheu este texto?
Desde miúdo que senti um enorme fascínio por teatro, até muito antes da música. No meu percurso, comecei com a música relativamente tarde, e muito antes de fazer música fazia peças de teatro, que encenava e montava, tanto em casa, como na escola, como na quinta da minha avó, e fazia mesmo espectáculos, com entradas e público convidado. Depois voltei-me para a música, mas nunca deixei de ir ao teatro – vou sempre que posso – e compro imensos livros de teatro. A partir do momento em que fui para Nice estudar – estive lá três anos – estava sempre à procura de um texto para fazer uma ópera…
Embora não fosse um género evidente para um compositor da sua geração…
Até então eram raríssimas as óperas novas. Depois a tendência voltou em grande, não só cá; a tese da morte da ópera, do Pierre Boulez, está definitivamente enterrada. A ópera está completamente viva, não sei se exactamente em função das óperas que se estão a escrever agora, mas pelo menos como espectáculo. Lembro-me de uma coisa que o Joly Braga Santos me dizia (estudei quatro anos com ele, foi o meu principal professor de composição): que só se dever fazer ópera depois de ter feito tudo o resto. Porque a ópera é o mais difícil de tudo, é preciso compatibilizar dois mundos – o teatral e o musical – completamente distintos.
E desenhar um ambiente dramático…
Exactamente. No fundo é fazer uma encenação. Escrever uma ópera é já encená-la, define uma parte fulcral da encenação. Infelizmente o que está na moda, desde há várias décadas, é ir contra o que está originalmente pensado no libreto e na partitura, destruir – já nem falo de épocas ou marcas dela, com os figurinos -, mas desmontar o texto, ignorar ostensivamente a didascália. É uma coisa que me horroriza: a didascália tem uma razão de ser e, sendo boas, essas indicações são úteis e preciosas.
Chega-se mesmo à destruição músico-dramática, vendo acontecer no palco coisas que não há na música…
E que não fazem o menor sentido. O resultado é uma mútua anulação, com a encenação a impedir a fruição da música e a música a nada ter a ver com a encenação. É uma tendência em que a Alemanha e a Áustria são os piores exemplos, porque ainda estão num rescaldo pós-moderno, que já nem é pós-moderno, mas apenas escatologia niilista, a vontade de destruir tudo, de fazer de tudo um vómito que nos é atirado à cara. Mas regressando ao doido…, quis fazer primeiro uma ópera de câmara, porque era um projecto com menos meios, que não me obrigava a pegar logo numa grande orquestra, coro, um palco imenso; e para isso fartei-me de ler textos – tenho aí dezenas de peças portuguesas, fui comprando tudo o que encontrava – e a peça de Brandão, que li ainda em Nice, foi amor à primeira vista; pensei que era exactamente aquilo que eu queria pôr em música. Depois é que veio a encomenda da Lisboa-94, por iniciativa de João Paes: foi uma conjugação feliz e um favor que lhe devo.
O que é curioso, porque é uma peça que, até agora, não tinha entusiasmado grandes encenadores.
O que é uma coisa escandalosa, porque é um dos melhores textos da nossa dramaturgia. É um texto ultra-teatral. Tem talvez uma desvantagem, que pode explicar porque não se faz mais: é muito curto e não preenche um espectáculo inteiro. Neste caso da Companhia de Teatro de Almada, acho que se fez a opção ideal, juntando a peça e a ópera.
E musicalmente, como é que parte para esta segunda ópera?
Logo que acabei de estrear O doido e a morte, decidi que queria fazer outra ópera. Li imensas peças até encontrar esta [O Tempo feminino, terceira parte da Trilogia Portuguesa] de Miguel Rovisco; lembrei-me então que até a tinha visto em cena – no Teatro Nacional D. Maria, em 1988, com a maravilhosa Fernanda Alves como protagonista – e que tinha adorado, mas entretanto esquecera-me dela. E foi outra vez amor à primeira vista: quando li este retrato da D. Maria I, adorei – o que eu me identifico com esta D. Maria I!, percebi que nele está condensada a essência de tantas coisas que eu quero dizer – adoro aquele lado da evasão, da pessoa que está completamente deslocada num mundo que nada tem a ver com ela, que tem de ser rainha contra a sua vontade, que sofre uma série de desgraças horrorosas e que simplesmente não é capaz de aguentar e enlouquece. Só que, paralelamente, também me fascinou que a personagem estivesse sempre entre alguma lucidez e o total delírio, com grande sentido de humor – é inteligente, é witty, os comentários que faz são muito cómicos -, e, ao mesmo tempo, está submersa naquela religiosidade ultraconservadora: é uma personagem completamente humana, tão paradoxal como o ser humano é paradoxal. Também adoro aquele contraponto com outro personagem que é a dama de companhia, a Henriqueta, duquesa de Lafões, uma jovem de 17 ou 18 anos que se ofereceu para tomar conta da rainha e que é uma ressabiada, perversa, gélida, que tem um trauma que só depois percebemos, um trauma muito escondido, de infância. Ela é precisamente o oposto de D. Maria: odeia a Humanidade, odeia os homens, odeia tudo, ela é a encarnação do ódio, da reacção desumanizada contra a sociedade; e depois há, ainda, outra personagem que quase não chega a cantar, porque na peça também quase não fala, embora esteja muito presente: é a Rosa, inspirada igualmente numa figura histórica (uma anã negra, favorita da rainha), que aqui não é anã, mas uma criada negra, e que representa um pouco o bom selvagem, a reacção simples do regresso às origens primordiais do ser humano, em contacto perfeito com a natureza. É um pouco o regresso a África e o regresso a essa pureza primordial. A ópera joga-se entre estes três extremos e cada um deles vai fugir à sua maneira…
A sua relação com a peça de Rovisco parece-me diferente da que teve com o texto de Raul Brandão, nota-se que a apresenta com maior prazer.
Sim, é completamente diferente. Há uma empatia emocional muito mais forte. N’O doido e a morte havia um lado quase brechtiano, uma certa distância, embora nos momentos sérios do sr. Milhões houvesse coisas muito minhas, angústias, coisas totalmente sinceras – ainda que falar acerca do que é ou não sincero… -, coisas com as quais sentia uma identificação forte. N’A rainha louca, à medida que componho – agora estou quase a acabar – vou escavando, encontrando tantas subtilezas, que na ópera anterior ficavam um pouco de lado, dada a sua brevidade (cerca de meia hora). Aqui, pelo contrário, já apontei para uma maior duração, perto da hora e meia.
Aumentou o dispositivo orquestral?
É maior. Pode-se dizer que ainda é uma ópera de câmara, é um pouco o padrão das orquestras das óperas de Benjamin Britten – quinteto de sopros, quinteto de cordas, neste caso com cravo, harpa e um percussionista que toca marimba, tímpanos, glockenspiel. Formam três mundos distintos. No fundo há um certo paralelo com O doido, mas eu multiplico algumas das coisas que aí fazia. Por exemplo, o Cravo que encarnava um pouco aquela sabedoria do sr. Milhões, o lado estranho do sr. Milhões, …
Que me lembre, há dois momentos em que o cravo soa a solo, como se fosse uma voz alada…
Sim, logo na primeira vez que se fala do sr. Milhões aparece o cravo, como a marcar aquela personagem estranha, fora do mundo. N’A rainha louca há três instrumentos que representam cada uma das co-protagonistas: a harpa que é a D. Maria, o cravo que é a Henriqueta – aqui é o cravo no seu lado mais crispado, cujas cordas são pinçadas, literalmente arranhadas -, e a marimba que representa a criada negra.
É interessante que o cravo vá representar uma personagem completamente distinta.
Mas também com uma música completamente distinta, e quero mesmo que seja utilizado um cravo moderno e não um cravo barroco; não aquele cravo delicadinho do barroco, mas um daqueles cravos que imitam pianos, gigantescos, com um som extremamente metálico, com pedal, como os que tocava Wanda Landowska. Quem vier ver O doido e a morte e depois vá ver A rainha louca vai ficar surpreendido, porque é muito diferente, embora se reconheça também à légua que sou eu. N’O doido… eu revisitei algumas das músicas do século XX: há um certo lado jazzístico, um certo lado expressionista, é como que uma visão imaginária da música dos anos 20, que podia ter existido mas não existiu. Aqui é uma música do século XVIII que podia ter existido e não existiu. É completamente outro universo
Quando há pouco punha a questão sobre o expressionismo musical era aí que queria chegar.
Só a posteriori, ouvindo pessoas cuja opinião considero, é que senti que havia n’O doido… sonoridades muito próximas do expressionismo, embora não tenha tido grande consciência disso quando estava a compor a ópera. O lado do jazz foi mais voluntário.
Sim, há mesmo uma citação directa…
Sim, a entrada do sr. Milhões faz-se ao som de um walking bass. É uma espécie de jazz imaginário: tem ingredientes de jazz, mas era impossível que fosse jazz, porque muitos princípios do jazz são completamente desrespeitados: é muito mais irregular ritmicamente, muito mais cromático.
Esse regresso musical a vários passados passará por manter uma distância prudente em relação à música contemporânea ou advém dos registos de ambas as peças?
N’O doido o registo é de farsa, as personagens são um pouco bonecos; não pretende ser «teatrão», é uma miniatura caricatural. Musicalmente, agora tendo mais para me pôr de alma e coração nas obras. Diga-se que eu venho de um caminho diferente da maior parte dos compositores da minha geração, segui um percurso bastante atípico. Por um lado venho do mundo da música prática, pois sou instrumentista de cordas; actualmente é raro um compositor tocar um instrumento da família das cordas, porque são instrumentos que exigem uma grande especialização, é preciso começar muito cedo, e muitas horas de dedicação; é raro um compositor ser também violetista. Aliás, hoje em dia é raro os compositores tocarem um instrumento: já nem digo o piano, que era o instrumento básico da composição. Por outro lado estudei com o Joly Braga Santos, que era o oposto da linha musical de um Jorge Peixinho e da evolução da vanguarda, especialmente o Emmanuel Nunes, que é o outro extremo da escala, o extremo oposto em relação a tudo aquilo de que eu descendo e com que eu me identifico. Ou seja, sou um bocado uma avis rara, porque a minha maneira de fazer e apreciar música não está ligada à música contemporânea. Estou até um bocadinho traumatizado com concertos de música contemporânea: é raríssimo ir, só costumo ir quando tenho algum amigo que estreia uma obra. Para já, não gosto da ideia de concertos exclusivamente dedicados à música contemporânea, não me parece saudável, acho que se deve misturar; e, depois, porque estou farto de música feia, já se atingiu um ponto de verdadeira saturação. Acho que precisamos urgentemente de voltar a fazer música que as pessoas digam «Ah! Que bonito», e que ficam a ouvir pelo prazer. Acho que precisamos disso outra vez, o que não significa voltar ao passado…
Não podemos voltar ao romantismo ou ao classicismo…
O pastiche é o maior perigo, mas o que é realmente difícil e vale a pena tentar é reencontrar essa fruição harmoniosa, melodiosa, com pólos tonais. A melodia foi como que proscrita, mas para recuperá-la o perigo é cair em música fácil: o fio da navalha é muito estreitinho, e é isso que me interessa e que eu estou a tentar fazer n’A rainha louca. É claro que eu adoro O doido a morte, mas o doido é aquilo que eu era há quinze anos atrás e A rainha louca – que se estreará em Fevereiro de 2010 – é o que eu sou neste momento.

Em casa do compositor, esta conversa sobre O doido e a morte começa, pois, com a partitura d’A rainha louca à vista. Dezasseis anos após a estreia, na Lisboa-94, da ópera que Joaquim Benite decidiu voltar encenar – na segunda parte do espectáculo onde também se assistirá à peça de Raul Brandão em que Delgado se inspirou -, quis conhecer melhor a génese de uma obra que permitiu a Carlos de Pontes Leça vaticinar que «com esta sua primeira incursão no género, [Alexandre Delgado] prometeu ter capacidade para vir a ser o melhor compositor português de ópera depois (e a par) do seu mestre Joly Braga Santos»

Miguel-Pedro Quadrio, 5 mai 2009

mostrar mais
Back to top button