Distopia trágico-cómica

Helena Simões in Jornal de Letras, 19 Maio 2021

Desde logo um espetáculo surpreendente pela mestria de realização plástica e coerência estilística. Tanto na vertente cenográfica e na conceção dos figurinos, como no trabalho dos atores, seu movimento, gestualidade e elocução de um texto dramático que pode parecer uma comédia musical com quatro personagens, a intercalar os diálogos com canções, mas que, assim posta em cena, resulta numa extravagante trágico-cómica farsa política, a enfatizar todas as virtualidades textuais.

Falamos do mais recente espetáculo da Companhia de Teatro de Almada (CTA), Shitz, de Hanoch Levin (1943-1999), no que constitui a primeira incursão na vasta dramaturgia de um autor praticamente desconhecido em Portugal, como refere o diretor artístico da CTA, Rodrigo Francisco, no caderno de Textos de Teatro dedicado ao espetáculo. Com o cuidado habitual nesta Companhia, o texto é também editado, em tradução exemplar de Lúcia Liba Mucznik, a alcançar equiparação linguística e adaptação prosódica do hebraico para o português, tanto nos diálogos como na difícil adequação de métricas e rimas nas quinze canções que pontuam na peça. Pela sua mão, ficamos a conhecer um dos mais importantes criadores da cultura hebraica, que se desenvolveu prolificamente no teatro, na poesia, na prosa, em contos, mas também como guionista e encenador, muitas vezes das suas próprias peças. Traduzido em mais de vinte línguas, a sua produção é multifacetada, a acolher com igual benefício peças cómicas e trágicas, sátira política, cabarets satíricos, temas históricos e mitológicos, peças radiofónicas, canções e sketches, em que fixou e expandiu a sua própria linguagem teatral como autor e encenador.

Shitz, a peça a que agora podemos assistir em Almada, com encenação brilhante de Toni Cafiero, justamente, mistura o género de comédia familiar com o da sátira política. Escrita em 1974, no contexto histórico israelita de duas guerras: a Guerra dos Seis Dias, em 1967 e a Guerra do Yom Kipur, em 1973, revela o logro moral da vitória na primeira e o seu agravamento em consequência da derrota na segunda. Para além do da ausência de valores éticos e espirituais, em consequência da avidez pelo dinheiro fácil, proporcionada pela condição de triunfo, a reflexão que Levin propõe dirige-se à contrapartida de vazio existencial que a prática do capitalismo agressivo provoca no cidadão consumidor e de como a guerra potência essa circunstância. Em Shitz, Levin traduz essa situação metafísica através de uma incisiva organização de aviltantes cenas do quotidiano familiar, nas quais a gula funciona como elemento aglutina-dor de todos os desejos insaciáveis, expressos numa linguagem crua, direta, grosseira, virulenta, num verdadeiro massacre poético, espelho caleidoscópico da degradação da linguagem, das relações e do ser humano consigo próprio.

Toni Cafiero, que já conhecíamos do Festival de Almada, em 2016, (com o seu grande êxito no espetáculo O Feio), assegurou a universalidade dos contextos descritos, concebendo um mecanismo de representação global, na cenografia e direção de atores, onde o grotesco serve de base à violência dos enredos, tomando cómicas as situações improváveis e deliberadamente absurdas.

Com igual grau de sofisticação, os fabulosos figurinos totais de Ana Paula Rocha constituem parte fundamental nesta proposta cénica, ao quase substituírem os atores por marionetas, com humor físico e caricatural, deformados pela obesidade, o que talvez dificulte o movimento dos atores, mas que lhes permite executar excelentes desempenhos, servindo-se dos novos corpos, assim estilizados, a cumprir plenamente a sua significação. André Pardal (O pai, Shitz), Diogo Bach (A mãe, Tsecha), Erica Rodrigues (a filha Shpratsi) e Pedro Walter (o noivo, Tcharkas), com técnica e talento entretêm uma despudorada comédia-cabaret equívoca e distópica, acompanhada da música e interpretação de Ariel Rodriguez.

SHITZ de Hanoch Levin, Encenação Toni Cafiero, Tradução Lúcia Mucznik, Música Ariel Rodriguez, Cenografia Toni Cafiero e Guilherme Frazão, Figurinos Ana Paula Rocha, Luz Guilherme Frazão, Apoio vocal Ana Ester Neves, Assistente de figurinos Carolina Furtado, Intérpretes: André Pardal, Diogo Bach, Erica Rodrigues, Pedro Walter, Ariel Rodriguez (piano). Produção Companhia de Teatro de Almada. Teatro Municipal Joaquim Benite, de terça a sábado às 20h30, domingo às 10h.Até 30 de maio.
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