Demarcy-Mota

Ou a Poética Construção da Cena

Paulo Trindade in Público, 8 jul 2003

A poética encenação do luso-francês Emmanuel Demarcy-Mota marcou da melhor forma o segundo dia do Festival Internacional de Teatro de Almada, na sua vigésima edição. Prossegue-se, assim, um trabalho consistente que tem vindo a afirmar o festival como um dos melhores em Portugal.

Em edições anteriores, estiveram presentes encenadores como Peter Brook, Giorgio Strehler e Luc Bondi, permitindo ao público português contactar com propostas estéticas singulares. Este ano, a grande expectativa recai sobre o suíço Benno Besson, que se apresenta na próxima semana com o Teatro Stabile del Veneto.

Mas não é só com nomes consagrados que o programa do festival se desenha. Mais recentes, e igualmente curiosos, criadores foram também convocados. É o caso de Emmanuel Demarcy-Mota que, depois da Fundação Calouste Gulbenkian e do Teatro da Comuna, volta agora a Portugal para um espectáculo no Grande Auditório do Centro Cultural de Belém (um trabalho de 2001 que ele afirma estar em permanente construção): “Seis Personagens em Busca de Autor”, a partir da peça de Luigi Pirandello.

Dezoito corpos deambulam numa lenta e suspensa ocupação do espaço cénico. Uma pictórica orquestração dos corpos, perceptível num esbatido claro-escuro que deixa apenas perceber uma imagem difusa, contra o fundo avermelhado e enferrujado. Deambular que se faz por entre as cadeiras e mesas de madeira, o enorme baloiço, os projectores, o estrado à esquerda e o piano à direita. Uma mulher toca uma música no piano. Pára. Recupera o gesto, percorrendo de novo o teclado. Quando o piano sai de cena, fica uma música de fundo que subtilmente acompanha a acção.

Demarcy-MotaAo centro do palco, entre o proscénio e a primeira fila da plateia, projecta-se uma “passerelle”, na extremidade da qual se encontra a mesa do Encenador. Está a decorrer um ensaio com os actores e alguns técnicos, igual a tantos outros se não surgisse um grupo de pessoas que se anunciam como personagens à procura de um autor. Quem as criou recusou-se a integrá-las numa peça, restando-lhes apenas a hipótese de que um outro o faça. Só assim poderão viver a realidade das suas vidas fictícias.

O decompor da linguagem teatral patente no texto ganha uma inusual densidade com a artesanal e exposta arquitectura de cena, a cargo de Yves Collet e Michel Bruguière. Arquitectura feita de pormenores e mudanças precisas, criando diferentes espaços que caminham no sentido da depuração. Até que se chega à imagem do jardim, sugerido por uma verdadeira árvore invertida descida da teia, que fica pendurada com a copa muito perto do solo. Quando os espectadores adaptam o olhar à penumbra que acompanha a revelação desta imagem, desce, muito lentamente, uma vara com uma fila de projectores que os ofusca. Um breve apontamento que agride os sentidos, apelando a uma resposta emotiva dos seus corpos concretos, presos na ficção da realidade.

mostrar mais
Back to top button