Cenas da vida de um átrio no Festival de Almada

O regressado Christoph Marthaler abriu a 39. edição do festival com um espectáculo que declina de forma original as formas do absurdo e do teatro musical.

Rui Monteiro in Público 06 Julho 2022 | notícia online
Um vizinho protesta a bom protestar. Que assim não dá, que já passa das dez e meia da noite, que aquele é um prédio de sossego, que é uma falta de educação, que está aqui está a chamar a polícia… Enfim, o que vizinhos incomodados e com queda para mandar vir costumam refilar quando dois homens desatam a cantar no átrio. O que é um pouco estranho, convenhamos, principalmente quando nem bêbados estão. Ou não. Afinal foi naquele mesmo edifício que, momentos antes, depois de abrir a porta cuidadosamente, um homem informou o inquilino, com toda a delicadeza, de que estava ali para o assaltar, e, perante a contestação, ainda acrescentou que talvez fosse um erro administrativo mas o seu nome e morada constavam de uma lista de casas a roubar e ele, ladrão que era, só podia levar a cabo a tarefa. Porém, como não dava jeito ao inquilino, e depois de uma discussão de carácter, digamos, profissional, a coisa foi adiada para quando fosse mais conveniente.

Para quem assistiu a peças como King Size, em 2015, ou Uma Ilha Flutuante, dois anos depois, mesmo sem memória da ainda mais peculiar +-0, apresentada em 2012, nada do descrito é, por assim dizer, uma surpresa. Para virgens no teatro de Christoph Marthaler (n. 1951), a intriga da peça que abriu o Festival de Almada pode ser um pouco confusa. Mas só no princípio, pois rapidamente se compreende que o palco é habitado pelo absurdo e, logo a seguir, que não vale a pena procurar o fio narrativo, porque tal coisa nem passou pela mente do dramaturgo suíço. Senão porque estaria um tipo no átrio a tocar viola da gamba sobre as notas do Prelúdio de Tristão e Isolda que saem do gravador a seus pés? Ou que raio de razão levou o dramaturgista Malte Ubenauf a juntar ao texto pedaços de erudição e poesia e música criados por Henri Michaux e Georges Perec, Kurt Kusenberg ou Edith Sitwell, Bach e Saint-Saëns e Wagner ou Léo Ferré?

Contudo, apesar das aparências e das situações cada vez mais parvas, como a cachoeira de jornais e revistas que sai da caixa do correio pouco depois de uma catadupa de bíblias se esparramar no chão do átrio, ou quando algumas das diversas personagens interpretadas por Graham F. Valentine desatam a falar línguas, este não é um teatro de absurdo. Pelo menos no sentido mais estrito e académico. Embora se aproxime do cânone estabelecido para o género, o que o autor faz é alinhar, sem aparente preocupação conceitual, estilhaços de vida, pedaços de existência a que falta sempre algo, em que há um bocado de informação a menos, de certo modo como aquelas imagens em que é preciso preencher o espaço entre pontos antes de encontrar a configuração oculta, delegando essa função no espectador capaz de enfrentar o desafio – pelo menos até descobrir que, una os espaços em branco que unir, o resultado será sempre diferente e, na verdade, indiferente ao desenrolar da acção ou de nela estabelecer qualquer tipo de linearidade.

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