Cadernos RDB em Almada #2 | O teatro, vida de outra maneira?

DA SEGUNDA SEMANA DO FESTIVAL DE TEATRO DE ALMADA, ALÉM DA CONCLUSÃO DE O SENTIDO DOS MESTRES COM JOSEF NADJ, DESTACAMOS QUATRO ESPECTÁCULOS, AOS PARES: CORPO SUSPENSO E UM GAJO NUNCA MAIS É A MESMA COISA, DRAMATURGIA PORTUGUESA ACTUALÍSSIMA, ONDE O TRAUMA DA GUERRA ESPOLETA O DRAMA, E OMMA E O CANTO DO CISNE, A VIDA DANÇÁVEL COMO LUGAR MÁXIMO DO PENSAMENTO.

Joaquim Paulo Nogueira in Rua de baixo, 19 Julho 2021 | notícia online

Respiremos este ar de Verão na, por estes dias de Julho, cidade do Teatro, Almada. As nossas memórias trazem-nos inevitavelmente as tardes e as noites da António da Costa. Tanto que inúmeras vezes pensámos, este espaço, por tudo o que torna possível e concretiza, é o que torna único este Festival. E claro que é uma das coisas que o singularizam. No entanto, a 38ª edição, com o palco grande desactivado e sem aquele vaivém de encontros na esplanada permitiu a descoberta de novas essencialidades. Já não nos abraçamos como antes, já não somos tão esfuziantes nos reencontros, falta-nos no palato aquele sabor doce de uma dança, as máscaras fugiram do teatro e colaram-se à nossa pele, somos personagens de uma ficção inenarrável, a vida imita o teatro, lembram-se?.

Adiante.

Para uma dramaturgia do espectador
Desde o primeiro momento, ainda na apresentação do Festival, tínhamos detectados esta possibilidade de criar articulações de sentido entre os vários espectáculos. E já o dissemos que o fazemos à revelia do programador, que gere intuições, coincidências, acasos e oportunidades e que como escreveu Rodrigo Francisco, citando um episódio passado com Joaquim Benite,  atenta à diversidade e pluralidade dos espectadores, tem de ter a preocupação de ter um pouco de tudo.

Estamos a apontar para uma dramaturgia que fizemos enquanto espectadores, enquanto espectadores privilegiados é certo, podemos por em comunicação uma série de materiais, a gravação das conversas, os textos bases do espectáculo que o incansável serviço de comunicação nos disponibiliza. É a estes, aos espectadores, que gostaríamos de contagiar com esta possibilidade de criar espectáculos, desenhados nos nossos mapas mentais, através da descoberta de caixas de ressonância entre as peças que vamos vendo.

Os espectáculos que terminaram a sua apresentação
Despediu-se esta semana do festival Duas personagens, de Carla Galvão e Sara Castro (Texto RDB, “Tennesse Williams à procura de Godot”), Corpo Suspenso, Cenas da Vida Conjugal (que veio substituir Tierras de Sud e sobre o qual já falámos, “Poderemos viver sem mentir?”) Omma e Maria Callas – Cartas e Memórias. Começaram esta semana e vão até domingo, A Lua vem da Ásia, Fake, O Canto do Cisne, Rebota, Rebota e em tu cara explota.

E se a Corpo Suspenso Um Gajo nunca mais é a mesma coisa, tencionamos dedicar textos autónomos, não resistimos a aproveitar para colocar em diálogo dois espectáculos de dança apresentados no palco principal, Omma, a última criação de Josef Nadj e Canto do Cisne, onde Clara Andermatt revisitou, a convite da Companhia Nacional de Dança, uma das últimas peças dançadas pelo extinto Ballet Gulbenkian.

Omma, a busca de uma ancestralidade que nos traz o futuro
É a segunda apresentação deste espectáculo por isso o coreógrafo Josef Nadj na conversa que teve com a RDB (a publicar em breve) manifestou a sua grande expectativa face à reação  do público de Almada.

E nesse aspecto pode ir o coreógrafo bem satisfeito. Os espectadores do Festival foram sensíveis à intensidade e à beleza de Omma. Os oito bailarinos africanos, que começam enfiados nos fatos escuros que já se tornaram uma presença constante nos trabalhos do coreógrafo,“é a minha assinatura”, diz ele quando conversou, como se não lhe pudesse escapar, é o ponto de partida, é também um diálogo entre Nadj e os oito bailarinos e nesse diálogo eles rapidamente se libertam do figurino e dançam livremente o negro dos seus corpos.

Este aspecto é importante. Perguntámos-lhe por ele, queria ele o exotismo dos corpos africanos, um olhar manchado por uma marca quase neocolonialista? Como estava preparado para se relacionar com estes bailarinos sem os colonizar com a sua assinatura? Eram perguntas provocações, Nadj respondeu com grande simplicidade, dizendo que quando decidira que o próximo espectáculo seria com bailarinos africanos o fizeram com o coração e não com a cabeça e que descobrira estar muito mais próximo deles do que imaginara quando sonhara este encontro.

Ao lermos as notas do actor Pedro Fiúza sobre o Sentido dos Mestres, a oficina onde Nadj teve a oportunidade de abordar com um pequeno grupo de actores e bailarinos a sua pesquisa, percebemos o que nos queria dizer Nadj: anima-o agora uma busca de uma ancestralidade que une a humanidade a uma essencialidade que pode conter evidências novas sobre a nossa presença colectiva na terra.

Omma, que na sua amplitude semântica significa olho, olhar, o que se vê, o próprio teatro, é um trabalho minimalista sobre o som, sobre a respiração, sobre o ritmo, sobre a musicalidade, sobre o movimento, e mais do que isso, sobre um movimento que é quase inorgânico. Ou seja, matéria inerte que, agida pelo olhar,  se solta do corpo, e se torna movimento, voa.

É muito impressionante isso porque é uma evidência que salta do palco para a plateia. É como se cada um daqueles bailarinos, que está sempre entre o individual e o colectivo, fosse um portador interminável de narrativas, seguintes umas às outras, sem grande nexo causal, onde talvez a grande convergência temática que possamos encontrar seja o tempo. O tempo dos encontros, o tempo que já foi em nós, o tempo do fim, a morte.

E é inacreditável a forma como a morte, num aí, num flash surge ali no final de Omma: num daqueles vaivéns entre o movimento individualizado e a sua absorção pela formação colectiva, no meio de um silêncio incrível, dois corpos, ligados por um cordão vermelho, são levantados, horizontalizados, e estamos já no meio de um ritual fúnebre, mas também de um ritual do nascimento, aquele cordão umbilical, vermelho, cor de sangue, traga-nos a evidência do ciclo, o corpo morto ficará ainda em suspensão, preso pelo cordão.

É claro que esta imagem fortíssima, de uma beleza inexcedível, nos liga ao Canto do Cisne de Clara Andermatt. Façamos a passagem ouvindo Gilberto Gil na inexcedível voz de Caetano:

“Quem poderá fazer aquele amor morrer /Se o amor é como um grão?/Morre e nasce trigo/”Vive e morre pão”

O Canto do Cisne, do Ballet Gulbenkian para a Companhia Nacional de Bailado
E nem precisamos de reforçar a conexão estranha: esta peça evoca-nos um fim, o do Ballet Guilbenkian, mas também uma sobrevivência da mesma neste objecto criado por Andermatt para a CNB.  Na verdade a pesquisa de Clara Andermatt em O Canto do Cisne vai como uma flecha em direção ao tema do desconhecido, e neste a morte, não como uma narrativa do fim, mas como uma explanação do princípio. O espectáculo parte de “A Morte do Cisne”, de Camille Saint-Saens e tem música de Vitor Rua que cria variações sobre o tema original.

Olhemos o movimento dos corpos: raramente, em poucos momentos, a forma como dançam remete para aquilo a que habituámos a pensar sobre a dança. A frase coreográfica de Clara Andermatt, sendo prolixa, não traz aquela exuberância gestual, onde se procura a graciosidade de uma forma exterior, aquele tradicional saltear e jogo de braços que se abrem e fecham, pescoços altivos determinados e dirigidos em frente.

Parece muito mais contacto-improvisação. Os corpos dançam no espaço, prolongam-se em volume e altura, metamorfoseiam-se, transformam-se noutros corpos, corpos poliformes, como se fossem barro, plasticina.

E depois raramente, mas mesmo raramente, dançam a música. Aliás, quando parece haver pas de deux entre os bailarinos e a música, como naquele instante quem que aquilo que se passa quase parece um bailado tradicional,  foi porque esta os foi agarrar, capturar.

É muito poderoso do ponto de vista narrativo este dispositivo que Andermatt e Rua criam. Salvo raros momentos não diríamos que aquilo é música no sentido mais limitado da disciplina artística. Claro a melodia visita-a, o ritmo, mas aquela construção sonora transcende-a, é discurso, discurso mesmo, com frases, perguntas, interjeições, o que estão ali a produzir sentido.

E se, tal como Omma, há um movimento orgânico, também há uma assinatura na forma como se coreografa o colectivo, as formações, em linha,  em v, por vezes quase parecem um esquadrão, movimentos para a frente, para trás. É esfuziante o frasear de Clara Andermatt neste sentido, está sempre a construir e a destruir o gesto. A surpreender-nos com formas que não nos permitem perceber o que irá a seguir. Ora é o colectivo que entra em cena para levar um dueto que dança, ora é o colectivo que em roda começa a assimilar o que o bailarino faz, no interior e assim, absorve e engole o seu fazer, ora é o bailarino que no centro se imobiliza e se torna espectador do grupo. E depois há formas extraordinárias: aquele quase relógio humano, com os corpos girando em círculo, ou a riqueza daquele momento em que sete ou oito pares, em linha, na zona frontal do palco, nos dão em colectivo o mesmo movimento.

A luz, que é complementar – não tem o papel discursivo do universo sonoro criado por Rua – reforça este enunciado coreográfico, tanto no trabalho muito próprio sobre a escuridão, a obscuridade,  quer  no seu suporte para passagens e mudanças de cena, e tem aqui e ali apontamentos, como a luz lateral que por ser muito usada em dança, nos remetem para um formalismo desta disciplina.

A primeira cena instala-nos logo neste frasear da coreógrafa: na escuridão, há vários pares deitados sobre o chão, que o preenchem. Estes duetos, à vez,  ora se apropriam da ação, ora se devolvem à imobilidade, ao silêncio. Este jogo, chão, movimento/imobilidade/silêncio/ vão ser constantes ao longo da peça.

Os colóquios na esplanada: os criadores por eles próprios
Continuou a parceria do Festival com a Associação Portuguesa de Críticos de Teatro, Rita Neves e Patrícia Couveiro (Corpo Suspenso) conversaram com Luís Soares, Sara de Castro e Carla Galvão (Duas personagens)  com Francisco Luís Parreira, Agnés Mateus e Quim Tarrida (Rebota, rebota y em tu cara explota) com Gonçalo Frota, Chico Diaz (A Lua que vem da Ásia)  com Helena Simões e Miguel Fragata e Inês Baratona (Fake) com Emília Costa.

Nesta semana uma novidade: as conversas passaram de novo para a António da Costa. É muito perto, a esplanada do teatro dá para o terreiro da António da Costa, mas funcionou como uma reconquista. 

No actual contexto de restrições devido à pandemia, estes espaços de conversa acabaram por ter uma função vital: se nas anteriores edições o bate-boca sobre os espectáculos, os eternos e tão vazios gostaste, não gostaste, eram muita vez o ponto de situação sobre o que se via, a conversa ganhou uma essencialidade em que para além da introdução do comentador de serviço, houve uma real oportunidade de darmos o foco aos criadores. E talvez seja essa a riqueza de um festival, por contraponto a uma apresentação regular na sala de espectáculos. Ouvir os criadores falarem do seu processo de trabalho, como Rita Neves e Patricia Couveiro, Sara Castro e Carla Calvão, Chico Diaz, enriqueceu em muito a relação que pude estabelecer com os espectáculos. 

Os 50 anos da Companhia de Teatro: as histórias do Festival de Almada  por Fernando Louro e Luís Vicente um festival que nasce num pátio histórico de Almada
O segundo colóquio sobre a história da Companhia de Teatro de Almada, organizado pelo jornalista José Mário Silva, debruçou-se sobre a implantação em Almada, dando especial importância ao Festival de Almada, no período entre 1978 e 1988. 

José Mário Silva começou logo por nos surpreender, com um testemunho muito emotivo em que lembrou que as suas primeiras memórias de espectador, e bastante nítidas, eram de um espectáculo do Festival, deveria ter uns seis anos. 

Para além disso também fez um levantamento, a traço grosso, de alguns dos momentos importantes deste tempo, com a mudança de espaços, com a perda de subsídio, as relações de má memória com o poder (Vasco Pulido Valente primeiro, ao penalizar todas as companhias que foram para a descentralização teatral, Teresa Patrício Gouveia depois quando perderam o espaço que tinham na Incrível Almadense), o trabalho incessante na criação de um repertório teatral capaz de criar um público e as estratégias para o conhecer (associação de espectadores, inquéritos ao público, trabalho  quase científico como reforçaria depois Vítor Gonçalves).

A sessão que em certos momentos quase parecia uma evocação de Os Amigos de Alex, pelas memórias cruzadas, pela alegria dos reencontros, teve vários momentos altos. Como quando Fernando Louro contou episódios da vinda do colectivo de Campolide para Almada e de como isso criou muito receio, estávamos a falar de pessoas que embora tivessem uma entrega total ao teatro  tinham outros empregos, receio que embateu na energia indomável de Joaquim Benite. Lembrou-se A Noite de José Saramago, feito em grande proximidade com o autor, encantado e muito disponível para alterar o texto, espectáculo que teve quatro meses em cena. A profissionalização trouxe também novas oportunidades de convidar actores mais conhecidos e que podiam ajudar a solidificar a implantação da Companhia. 

O segundo quando Luis Vicente fala da forma como surgiu o Festival, num pátio histórico, O Pátio do Prior, assim chamado por homenagem ao Prior do Crato, pretendente ao trono. Curiosamente ara além das habitações, foi ali que surgiu a primeira sociedade de recreio de Almada, os Cabralistas,  e mais tarde a Incrível Almadense. A sua utilização para representações teatrais data do século XIX. Neste pequeno pátio, como uma festa, surgiu pela primeira vez o Festival de Almada, dando corpo também ao trabalho de associativismo e animação teatral que a Companhia desenvolvia.

Há ainda como referência o modo como as redes de teatro internacional deram novas possibilidades de programação ao Festival; primeiro com os festivais universitários do Leste da Europa, depois e muito especialmente com o Instituto Internacional de Teatro do Mediterrâneo dirigido por José Monléon. 

Este olhar retrospectivo que a Companhia está a fazer assume uma especial importância, não só pela estabilização em comum da memória, não só  pela oportunidade de convocar olhares externos para esse trabalho, também porque num contexto em que o teatro português se reconfigura, de forma dramática para algumas companhias que fizeram a história do teatro pós 25 de Abril, é vital olhar para o trabalho de um colectivo que adquire cada vez uma maior projeção (inter)nacional. 

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